O texto a seguir foi postado originalmente no blog do Grupo de Estudos em Lde Literatura Contemporânea e traz um comentário ao livro Na teia do sol, de Menalton Braff. A parte referente ao livro está localizada a partir do quarto parágrafo e foi realçada para facilitar a identificação.
As memórias que assombram
(Andressa Estrela Lima)
O trauma possui um papel relevante na vida do ser humano,
porque costuma intervir na vivência de quem é afetado por atos violentos, sejam
eles passivos ou ativos, havendo reações diante da perversidade pela qual o
indivíduo passou. Com relação a essa temática, temos uma espécie de abalo
operado no sujeito atingido, que, consequentemente, costuma ter dificuldades em
assimilar, e superar, o ocorrido. Assim, segundo Jaime Ginzburg, em Crítica em
tempos de violência: “A definição de trauma, diferentemente, aponta para a
precariedade das condições de funcionamento da consciência.
O impacto violento
do trauma se associa ao despreparo do sujeito para elaborar e superar a
vivência e, mais ainda, para o conhecimento claro do que foi vivido. Como
excesso e ultrapassagem, o trauma é por si mesmo marca dos limites do sujeito
em sua própria autoconsciência”.
O trauma quando expresso na obra literária apresenta uma
espécie de pausa na vida do sujeito representado, pois ele não consegue
esquecer os momentos dolorosos que ficaram cravados em sua memória, como
confirma Feliciano Bezerra Filho e Silvana Maria dos Santos em Literatura e
política: “Em geral, aqueles que são vítimas da tortura carregam consigo chagas
traumáticas profundas. A experiência do trauma é ‘aquela que não pode ser
totalmente assimilada enquanto ocorre’”.
A assimilação desse impacto vai ocorrer tardiamente dentro
do sujeito, uma vez que o trauma paralisa mentalmente quem o sofre, e é mais
comum que o ser afetado relembre com mais facilidade o que aconteceu ao próximo
e não a ele diretamente, devido a essa incapacidade causada pela dor. A
desordem nos pensamentos é fruto da articulação imprecisa do passado com as
memórias do presente, visto que o indivíduo não sabe dizer se certos eventos
aconteceram com ele ou com seu próximo, devido as cargas excessivas de dores
físicas e psicológicas vivenciadas.
Nesse sentido, o personagem central da trama de Na teia dosol (2004), de Menalton Braff, representa como é viver constantemente imerso
nas memórias traumáticas. O enredo trata de um preso político, chamado André,
codinome Tito, que se encontra refugiado em um terreno campestre. Ao longo da
narrativa, o personagem central explicita ao leitor como e porque ele se
encontra praticamente isolado. A maior parte da obra se constitui em formato de
monólogo interior, no qual André rememora seu passado em consonância com o seu
presente, deixando claras as suas poucas possibilidades de futuro.
O contexto histórico da narrativa se
constrói em torno da ditadura militar brasileira, de cujos representantes o
protagonista se esconde por ter sido militante e por ter combatido o sistema
vigente. O narrador personagem, ao se isolar do mundo, perde o contato com sua
família, com sua namorada e com seus companheiros, tendo como companhia apenas
um cachorro e raras visitas, a quem chama de Velho e Guma.
O constante medo de ser capturado e a tristeza enorme que
sente pela vida que abandonou, fazem com que André se configure em um ser
angustiado, fragmentado e melancólico, rememorando sua vida, principalmente
eventos passados relacionados à sua prisão e à de seus companheiros.
A partir de uma
reflexão sobre os porquês da situação em que o protagonista se encontra, existe
a presença irrefutável de vários tipos de violência em sua vida, como a
violência física e a psicológica, seja com ele mesmo ou com terceiros. Diante
desses casos, os eventos perturbadores são rememorados com frequência.
Logo, a situação de violência que mais
perturba André, além de aparecer por toda a trama, é de uma mulher grávida
sendo espancada à luz do sol por um militar: “Quando ela tentou juntar a bolsa,
que tinha caído com a primeira bordoada, uma cacetada nas costas, com fúria, e
então ela se espichou toda, esmagando em cima da calçada o ventre volumoso.
Tentei gritar, pedir socorro, mas o grito gelou meu estômago e fiquei olhando
aquilo, que me paralisava, sem maior reação do que o suor que me cobriu o corpo
inteiro”.
O que amplia
a dor de André na cena é o sentimento de impotência diante desse fato. Ele se
recrimina por não ter ajudado, por ter sido capturado nessa hora, e sua única
ação possível foi ter de contemplar, de mãos atadas, a indiferença humana, por
parte do militar. A constante exposição à tortura que sofreu e presenciou faz
com que o personagem central viva atormentado por seu passado.
Apesar de seu sofrimento ser latente, ao ponto em que as
lembranças torturantes o assombre, percebe-se por parte do narrador uma
necessidade de contar, citando nomes dos companheiros de luta que não tiveram a
mesma sorte dele, a sorte de sobreviver ao que passou.
A temática abordada no livro em questão causa uma reflexão
devido à perpetuação desse tema, mostrando que apesar do tempo essa ferida
causada pelo período ditatorial não foi superada, sendo assunto de obras
contemporâneas da literatura, cinema e música, além de matérias recorrentes do
jornalismo. Com isso, mostra-se a necessidade de constantes discussões e
estudos a partir das representações na literatura brasileira, contribuindo para
que o abalo individual e coletivo possa ser superado.
Portanto, a literatura, como manifestação artística,
possibilita que os leitores encarem com mais sensibilidade esses temas, dado
que a violência está presente no dia a dia ganhando aspectos da normalidade, e
um dos motivos são os meios midiáticos tratarem-na de forma comum e intrínseca
à conjuntura social. A retratação da violência e suas consequências nas obras
literárias possibilita que a sociedade reflita a respeito de sua gravidade e da
importância de sua discussão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças