O andarilho
Houve um tempo em que eu, pelo menos uma vez por semana, percorria um bom trecho da Anhanguera, uma estrada paulista que atravessa o estado no sentido centro-oeste. Conheci cada pedra do percurso, árvore nenhuma estava fora de meu catálogo mental, as curvas e lombadas eram velhas conhecidas, enfim, conhecia a estrada em todos os detalhes.
Além dos seres brutos familiares, havia alguns seres humanos que me intrigavam. Eram os andarilhos que só muito raramente não apareciam no percurso. Alguns havia que já de longe eram reconhecidos. Quando algum deles faltava, era causa para preocupação. Mudara de estrada? Caíra doente debaixo de alguma ponte? O que poderia ter acontecido?
Um deles, homem alto e magro, gorro de tricô colorido na cabeça, trajado de sujeira, sempre a mesma, passo lento, olhar messiânico, um embrulho muito grande, às vezes às costas, muitas vezes nos braços. Provavelmente todos os seus pertences: a cama, a mesa, prato e talheres, se é que ainda os usava. O Magrão, como o apelidei, era infalível. Estava sempre percorrendo um trecho do meu caminho. Sempre tive muita vontade de parar e conversar com ele. O que podia ter levado um homem entre trinta e quarenta anos a abdicar a toda vida social, família, amigos, colegas, para caminhar, para andar com seu passo lento indo e vindo às margens da estrada. Eu, cujos compromissos eram marcados em relógio, nunca tive a oportunidade de satisfazer minha curiosidade.
Então resolvi transformá-lo em personagem de um conto. Claro, ficcionalizado. Transformei-o para que coubesse na história que eu ia inventando. E me saiu O gorro do andarilho, que não me satisfez a curiosidade, mas que causou alguma satisfação.
Fiquei alguns anos sem passar por aquele trecho da Anhanguera: os caminhos da vida não somos nós que escolhemos ‒ no capítulo da escolha, somos escolhidos muito mais do que escolhemos. Imagine um barco em uma corredeira. Conseguimos desviar de obstáculos, conseguimos manter o barco em posição normal; não conseguimos pará-lo ou fazê-lo voltar.
Nesse tempo, fui convidado para uma palestra sobre Nietzsche e acabei ouvindo o depoimento de um jovem, seus vinte e cinco anos, pouco mais. Passara muitos anos na estrada, como andarilho, chegou a Brasília caminhando. Lá permaneceu algum tempo, conversou com muita gente do povo que pensava mais ou menos como ele, de repente se tocou que não fazia sentido sofrer os golpes do sol inclemente, as chuvas e ventanias que enfrentava, que estava cansado de estrada, mas precisava voltar. Sentiu saudade das pessoas que o estimavam, sentiu saudade de aprender. Arrumou o dinheiro suficiente e tomou um ônibus de volta para sua terra.
Outro dia passei pela Anhanguera. Os andarilhos eram todos desconhecidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças