BORNOS
(Virgínia Finzetto)
verão de 40 graus. o clima seco e o calor intenso estavam
interferindo na possibilidade de uma escolha acertada. literalmente, de cabeça
quente, teria sido melhor ter se refrescado, ingerido muito líquido e procurado
um ambiente refrigerado, antes de tomar qualquer decisão. porém, a impaciência
do velho andaluz a atormentou de tal maneira, que ela apontou a casinha de
Bornos para ser sua vivenda por uns tempos. logo se viu assinando a papelada.
em pouco tempo um coche a conduzira para seu novo endereço. toda sua vida agora
se resumia a duas malas que conseguira trazer sem exceder o peso de bagagem da
companhia aérea barata. era o que menos importava, o essencial ia na frente,
ela, ao lado do condutor, pronunciando qualquer conversa fiada em espanhol
enquanto sua alma se convencia de quantas vezes e inúmeras tentativas em vão
tivera em adivinhar seu futuro planejado. chegamos! tudo era tão simpático.
pelo menos, até ali, nenhuma novidade. das muitas casas que procurara no site,
essa fora uma escolha acertada. com suas economias poderia bancar um aluguel
pelo tempo estipulado. abriu o portão de ferro da entrada e logo todo seu
desconforto foi amenizado pelo microclima fresco do pátio ajardinado. "bom
dia!",
ouviu de uma voz masculina com sotaque português. "a senhorita
já ficou sabendo dos últimos avistamentos?"... como um tropicão no dedão
do pé, ela voltou a cabeça para ele, da mesma maneira que se olha para uma
pedra ou elevação na calçada querendo tirar satisfação ou culpá-la pela
repentina interrupção do trajeto. "bom dia, senhor. o que disse?".
enquanto aquele senhor português permaneceu aguardando
alguma reação positiva de Ana, ela voltou a repetir a pergunta sobre que tipo
de avistamentos ele havia se referido. "pois, se não sabes, é bom que
permaneças assim... tem um ótimo dia", respondeu se despedindo. mas que
diabo de sujeito estranho, pensou, enquanto encostava o portão que dava acesso
à calle. depositou sua bolsa na mureta que cercava o jardim e entrou na pequena
casa. da mobília da sala se desprendeu um olor tão forte de velharia, que
atacou imediatamente sua rinite alérgica. após espirrar várias vezes, fez uma
rápida vistoria nos demais cômodos e abriu todas as portas e janelas para que o
sol pudesse penetrar e arejar os vãos, que pareciam bocejar após despertarem de
um sono centenário. ao mesmo tempo em que se ocupava com a tarefa, Ana acolhia
flashs aleatórios de sua vida. como em um roteiro, ia fazendo ali anotações
imaginárias, puxando setas dos detalhes relevantes, como se nessa revisão fosse
possível alterar um filme rodado, editando-o e colorizando-o em uma versão
atualizada.
deixou escorrer a água quente da torneira da pia da cozinha
até que ela se tornasse tíbia, pois desconfiou que com aquele calor não
esfriaria nunca. encheu os dois regadores e foi aguar os canteiros ressequidos
e saudosos da molha de uma chuva adiada por meses. entrou, acomodou suas malas
em um canto do quarto e abriu o velho guarda-roupas, que lhe soprou segredos
ali trancafiados. quem teria sido o último a habitar aquela casa? sentiu uma
pequena compaixão do móvel que bufava cheiros medievais enquanto ainda se
prestava a servir a tantas incógnitas, viajantes, passageiros, itinerantes.
seria apenas mais uma a lhe amolar com suas parcas roupas e poucos acessórios.
não pretendia ficar ali por muito tempo. tratou de tirar o pó acumulado em suas
frestas e borrifou nele um pouco de mauá, antes de guardar suas coisas. como
seria possível alcançar o que fica além das estrelas se ainda queria matar sua
curiosidade sobre toda a existência? a literatura era uma das vias que poderia
usar. cada personagem representa uma das facetas do que mostramos ou escondemos
de si e dos outros, como o deus que respira semeando e recolhendo o que quer.
olhar para o além do que ela podia imaginar estava sendo adiado. havia tanto a
lidar ao seu redor que não entendia como alguém se ocupa em divulgar
avistamentos sem ter testemunhado. não, ela não perdia tempo com suposições.
bebeu vários goles de água da garrafa que abastecera a
geladeira. todo o ambiente inundado com os raios de sol trouxera de volta a
alegria. acomodou a mala maior deitada sobre a prateleira do guarda-roupas e,
em seguida, antes de guardar a mala menor, retirou dela a pequena máquina de
escrever portátil e colocou-a sobre a mesa da saleta, inserindo uma nova lauda
em branco para testá-la e garantir que não havia nenhum dano provocado pelo
chacoalhar dos deslocamentos durante a viagem. "a humanidade é a
realização do eterno e cada indivíduo uma linha de um número incalculável do
que ainda está por vir. será possível que os exemplares derradeiros não
abriguem mais os primórdios dessa trama original?". ao registrar isso,
refletiu que o esquecimento gradativo a que todos fomos submetidos ao longo dos
milênios seria parte de um esgarçamento premeditado que não renunciou de deixar
em cada ser um fiapo que fosse de recordação de sua origem. e essa pequena
pista era a grande responsável pelo desejo nostálgico de voltar a se unir aos
outros fios, na tentativa de refazer, em retrospectiva na memória, a construção
do trajeto que levaria ao rico tecido inicialmente projetado. o sagrado havia
se espalhado e ordenado que toda a forma de arte e de escrita deixasse um
registro, uma pista e tudo o que pudesse levar a quem quisesse a fazer essa
viagem de volta. o profano seguia lado a lado. ambos trabalhando no imenso
bordado, recortando-o e colando-o, desfiando-o e tecendo-o, em maravilhas e horrores.
não eram suposições. muito menos sua era a criação dessa meada.
das transgressões que somente seu ser permite-lhe ir além
das crenças, Ana concluiu, finalmente, que ser livre como costumava se gabar
nem mesmo era um ato de sua própria vontade.
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