segunda-feira, 18 de março de 2019

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff, em sua maioria inéditas. A de hoje porém, foi publicada originalmente na revista Carta Capital.

Na sala de aula

Fui abordado por uma ex-aluna de língua portuguesa que me contou uma história de que já não me lembrava

Nunca fiz segredo do fato de ter sido professor de língua portuguesa por alguns anos. A razão por que não utilizo minhas experiências de sala de aula como matéria de crônicas desconheço. Suponho, entretanto, que seja por causa de minha memória já um tanto enfraquecida. A idade nos traz algumas vantagens, é inegável, mas muitas desvantagens também.

Ontem, no jantar de uma amiga, fui abordado por uma ex-aluna, perguntando se me lembrava dela. Por volta de uns vinte anos já se tinham passado, mas ao dizer que não, não me lembrava, não me senti culpado, isto é, não me acusei de senil. Dos quinze aos trinta e cinco uma pessoa geralmente sofre imensas transformações. Eu, depois fiquei sabendo, estava diante de uma urbanista cursando doutorado em algum ramo de sua profissão.

Comentamos episódios dos tempos em que convivemos como professor e aluna. De alguns ainda tinha alguma lembrança, mas outros já se tinham apagado inteiramente de minha memória. Rimos um
pouco, suspiramos ao julgar que aqueles tinham sido bons tempos e vituperamos o mundo por haver mudado tanto, sem nos lembrarmos de que as maiores mudanças tinham sido as nossas.

Então minha ex-aluna me contou uma história de que já não me lembrava.

Havia, na sala, um colega seu que não parava um minuto. Mexia com os colegas, falava alto, jogava bolinhas de papel na cabeça dos outros, levantava-se da carteira, enfim, para usar um termo em desuso, um verdadeiro traquinas.

Um dia, no meio de uma repreensão, chamei-o de fedelho. Furioso, levantou-se sem pedir licença e saiu da sala, dizendo que ia à diretoria registrar queixa contra mim, por havê-lo xingado de fedelho. A classe aquietou-se, mal os colegas conseguiam respirar.

Parecia ser uma acusação grave. Então eu teria, vejam só, eu não me lembrava disso, para desfazer aquele clima tenso da sala, teria perguntado quem tinha um dicionário à mão. (Naquele tempo, era uma das exigências das aulas de português).

Um menino do fundão foi o primeiro a levantar a mão. Eu teria sugerido ao menino que procurasse aquele palavrão. O fundão geralmente é um problema na sala de aula, é preciso contornar muitas pontas de lança para conseguir sua colaboração.

E o garoto leu:

Fedelho
1. Criança que ainda fede a cueiro; criança muito nova
2. Jovem de pouca idade
3. Rapaz que tem comportamento infantil

A classe, que estava sem respirar por causa de um clima tenso, prorrompeu numa saudável e aliviadora gargalhada.



Como muitas vezes acontece na vida, a acusação não tinha fundamento. E registro o fato na memória do computador, que é mais confiável do que a minha.

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