Palavras mudas
(Matheus Arcaro)
Em matéria de amor,
o silêncio vale mais do que a fala.
(Blaise Pascal)
Há quatro anos, toda semana, eles se viam. Não falhou uma quinta-feira. Apenas duas vezes, no primeiro e no terceiro ano, ela se atrasou. O motel era num beco penumbroso, colado ao bar onde se conheceram. Quarto sem muitos requintes: box com chuveiro, cama e espelho no teto. Ela gostava de olhar para a própria bunda enquanto ele a penetrava de quatro. Era como se possuísse duas almas.
Saíam do motel cada um no seu carro. Alternavam quem ia embora primeiro:uma semana ele, uma ela quem pagava. Ele levava para casa o sabonete, rabiscava no verso a data do encontro. Em seu closet, duas caixas de papelão: 208 embalagens, contou. Ela levava a satisfação nos seios e nádegas doloridos.
Nunca trocaram uma palavra. No primeiro encontro, ele dançava no canto da pista, arrastando os olhos pelo piso pegajoso. Restavam poucas pessoas no bar quando ela chegou. Pediu uma caipirinha e sentou-se no balcão. Assim que ele ergueu a cabeça, os quatro olhos se misturaram. Ela se levantou, caminhou – o coração dele a gritar –, prendeu-o pelo pescoço e o beijou. Um beijo que ele não sabia
caber dentro de alguém. Repetiram a transcendência boas vezes até que ela o pegou pela mão – ele deixou-se ir como uma pena presa a uma linha fina –, pagou as duas contas e, poucos passos, entrou no motel. Para a recepcionista, apontou o número da suíte. A noite inteira, só usaram a linguagem dos corpos. Ela era eloquente, sabia desses tipos de fala. Ele ouvia e, como bom aprendiz, imitava as palavras mudas.
No mesmo horário, na quinta-feira seguinte, estava ele em frente ao motel. Esperou sob a marquise, “Momentos” piscando em vermelho e azul, olhou para o relógio até os ponteiros o encararem de volta, olhou para cima e para baixo, para a esquerda e para a direita... Resolveu perguntar na recepção. Ela estava na suíte: roupas derramadas pelo chão, ela molhada. Desde então, toda quinta-feira. Em quatro anos, discursaram em vários idiomas. Poesia, conto, novela. Ele perdeu a gagueira. Ela, os vícios de linguagem. Atrito ofegante, suor, secreção. Oratória digna de qualquer parlamento.
Mas há alguns meses algo inominável crescia dentro dele. Quiçá aquilo o habitava desde a primeira vez que transaram e, nos últimos tempos, apenas ganhou forma mais nítida. Naquela manhã de quinta-feira, acordou decidido. Na verdade, não acordou porque não dormiu: rolou na cama com a dúvida entre os olhos. De manhã, no escritório, o triplo de café que costumava tomar. Durante o almoço, Belchior no discman, “Tudo é permitido, até beijar você no escuro do cinema quando ninguém nos vê”, a música que tocava no bar quando se beijaram. À tarde, duas reuniões. Mas nada arrancava das cavas do peito a pergunta que faria a ela.
No caminho para o motel, pensou em desistir. Para que saber esse tipo de coisa?
Ligou o rádio, mas não escutou que, dias antes, Caniggia acabava com o sonho
brasileiro do Tetra Campeonato de futebol. Chegou primeiro, abriu a porta da suíte e se deitou. Pronto, estava decidido, não perguntaria coisa alguma. Pouco depois ela entrou. A conversa dos corpos durou a noite toda.
Ainda pelados, o sol a se esfregar na parte baixa do colchão, ele se virou. Os
olhos se abraçaram, como há quatro anos. Ele, então, soltou a pergunta.
Foi a última vez que ele a viu.
Conto do livro “Amortalha” (Patuá, 2017)
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