Quando o bom é ruim, ou: da relatividade das coisas
Hoje perdemos uma crônica
Há muito li uma crônica e, como gostei muito dela, fico achando que era do Rubem Braga. Alguém se queixava ao cronista de que jornal só publica desgraça. Terremotos, descarrilamentos, enchentes, violência urbana, corrupção na política, o sorriso do Trump na televisão, aquele sorriso meio cafajeste, coisas desse tipo.
E o indigitado reclamante conclui perguntando por que ninguém publica uma notícia assim: Ademar da Silva (37) levantou-se ontem mais cedo, pois precisava trocar uma lâmpada antes de ir para o trabalho. Deolinda (35), sua mulher, segurava com as duas mãos a cadeira sobre a mesa, onde, encarapitado, Ademar trabalhava.
Ao terminar a troca e enquanto descia da mesa, o marido cravou os olhos dentro dos olhos da esposa, que emocionada disse: "Ademar, como te amo!" − ao que o marido respondeu: "Deolinda, tu és a mulher mais bela do mundo!". Feitas as declarações, abraçaram-se e beijaram-se com ternura.
A felicidade de ninguém conquista leitores, não é mesmo? Ah, mas um tropeço, uma desgraça, principalmente se embebida em sangue, a urubuzada cai em cima. Mas isso já é outro capítulo, aquele capítulo que fala sobre a atração que a morte exerce sobre algumas pessoas e que muitas vezes as fascina.
Claro que não me lembro dos nomes nem dos detalhes, mas a essência da notícia era essa aí. Mas isso é notícia? Numa aula de jornalismo de uma universidade norte-americana, um dos mestres ensinava: Se o cachorro morde o dono, isso não interessa; mas se o dono morder o cachorro vira notícia. É como aquela história da saúde: nós só nos lembramos dela quando a perdemos. Sentimos a dor, raramente percebemos o bem-estar.
Abro os jornais do dia e constato que nada aconteceu, nada, pelo menos que mereça uma crônica. À medida que o tempo passa, aumenta a angústia. A revista está esperando minha crônica e nenhum assunto do dia me sugere uma. Caramba, nem uma falcatrua, um passo errado de pessoa importante, nada, nada, de nada. O Brasil vive uma calmaria política invejável.
Os poderes mantêm-se independentes e em harmonia, os titulares de todos os cargos públicos são seres impolutos, a Justiça e o MP não cometem abuso de poder, enfim, nem de futebol se pode falar numa época em que não há mais campeonato.
Então me lembro do Rubem Braga (é dele mesmo aquela crônica?), e concluo que perdemos uma crônica, mas ganhamos sossego.
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