segunda-feira, 22 de julho de 2019

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne cronicas de Menalton Braff - algumas inéditas, outras publicadas anteriormente em revistas ou em seu próprio site.

Seres vivos


Ai de mim, que o Adamastor deu agora pra ler a Bíblia! E suas dúvidas, como sempre, vêm cair aqui no meu colo. Diria no meu regaço, que seria de melhor vernáculo, e, se deixo de fazê-lo, é porque temo as pedradas de alguns leitores, os poucos que ainda me restam.

Desde a semana passada, quando aqui esteve o gigante arrancado às páginas de Os Lusíadas, venho tentando resolver as questões que meu amigo levantou, jogando-as em meu colo. Colo, colar, colarinho, coleira, quer dizer, pescoço. Sei bem, mas me recuso, pelo que já ficou explicado, a usar regaço, como seria mais correto, por tratar-se da parte do corpo que vai da cintura aos joelhos, quando se sentado.

Deixando de lado questões de propriedade lexical, encaremos o assunto que me tem ocupado. O Adamastor andou lendo a história de Noé, e ficou muito irritado ao descobrir que todos os casais de seres vivos foram salvos em uma arca, mais conhecida como Arca de Noé. Me perguntou se era assim mesmo, como havia lido. Concordei, que era sim. Ele coçou a cabeça e, comentou, com uma
pergunta reflexiva: Mas o que é que pretendia Deus ao botar casal de pulga, de pernilongo, carrapato, percevejo e outros seres do mesmo quilate a salvo na arca? Foi minha vez de coçar a cabeça e confessar minha ignorância em questões de teologia.

Ofereci-lhe um cafezinho, crente de que a turbulência já havia passado, quando meu gigantesco amigo propôs uma segunda questão: Bem, ele começou depois de um gole de café, se Deus botou na arca um casal de cada espécie, é de se supor que sobre a Terra havia outros casais, não é verdade? Não tive como discordar.

Seus olhos brilharam de pura maldade. Ele estava com uma questão insolúvel entupindo-lhe a garganta e se livraria dela jogando-a no meu, quer dizer, sobre minhas coxas (pois estávamos ambos sentados).

Então, continuou, quer dizer que os outros, todos os outros, casados ou solteiros,
foram mortos por afogamento, não é verdade?

Bem, quer dizer, parece que sim. Os outros todos foram mortos por afogamento, salvando-se apenas aqueles beneficiados pela inclusão na lista dos casais que embarcaram na arca.

Há mistérios inquestionáveis, para os quais não encontramos respostas. Mas pensar nisso me ajuda a chegar a uma conclusão: não é tão grande assim minha culpa, se todos os dias, queira ou não queira, elimino por esmagamento ou qualquer outro método menos inconsciente uma multidão de seres vivos, minúsculos ou maiúsculos, não importa, mas seres vivos. Existe exemplo semelhante na história sagrada.

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