quinta-feira, 31 de outubro de 2019

CRÍTICA LITERÁRIA

A partir de agora, postaremos semanalmente esta coluna de crítica literária. As primeiras postagens conterão textos de Wagner Coriolano de Abreu, publicados originalmente no livro SEMPRE AOS PARES, lançado pela Carta Editora.

A CASA DA ESQUINA

(Wagner Coriolano de Abreu)

Ler A casa da esquina, de Duca Leindecker, com um lápis na mão, coloca em destaque algumas referências culturais da novela, entre as quais, a ditadura militar, a formação cultural dos pais e a
cultura do Sul. Com o propósito de estudar mais detidamente alguns aspectos da novela, publicada em 1999, examinei alguns fragmentos sem a preocupação de dar uma última palavra ao assunto. O ato de “recortar” um texto é antigo exercício de dominar o sentido da obra.

No final do oitavo capítulo, o narrador observa que seu pai retira do baú de citações um pensamento de Nietzsche. Pessoas cultas citam importantes pensadores. Atualmente, a moda é citar pessoas
anônimas. Contudo, é preciso reconhecer que os pensadores têm uma visão mais ampla das coisas da vida. Não pensam apenas para o momento, mas para o futuro.

A novela de Leindecker faz menção, entre outros, aos poetas Augusto dos Anjos e Walt Whitman, aos novelistas Oscar Wilde, Marcel Proust e Honoré de Balzac, ao filósofo Friedrich Nietzsche, aos seria-dos de televisão “Os trapalhões” e “Zorro”, aos fatos históricos Revolução de 1923 e Governo de Getúlio Vargas, ao Hino Nacional, aos carros de época Aero Willys e SP2 e à Rádio Caiçara.
Outra forma de citação aparece nas frases alemãs do primeiro capítulo “Non Armandio! Hände weg vom Kühlshrank!”, Não Armandio, tire as mãos da geladeira!, e do quarto capítulo “Dieser Junge
spinnt ein bibchen!”, Esse menino delira um pouco, assim como nos versos ingleses do décimo quarto capítulo “Loving you / Is easy / Cause you’re beautiful”, Te amar é fácil porque você é linda, conforme a livre tradu-ção, respectivamente, de Arthur B. Rambo e André Mitidieri.

O narrador Ranço, ao final do segundo capítulo, expõe elementos da política brasileira nos anos de governo dos militares (1964- 1984), os quais proibiram a livre expressão de ideias, impuseram uma
ordem político-econômica sem o consentimento da sociedade civil, enfraqueceram a oposição, não permitindo que os partidos pudessem interferir nos rumos da nação. Os pais de Ranço pertencem a uma minoria que teve acesso às informações e puderam formar um juízo crítico frente aos desmandos e perseguições: “Naquela época, apesar de novo, podia sentir o clima de medo que a ditadura exercia sobre a nossa casa: meu pai, advogado trabalhista, e minha mãe, professora de história, não escapavam de suas consciências. Na biblioteca, dezenas de títulos proibidos os faziam vibrar de forma defensiva quanto a tudo que pudesse representar ameaça”.

No décimo segundo capítulo, o narrador retrata a figura do pai do ponto de vista da formação intelectual. Tanto a mãe quanto o pai representam pessoas com acesso à alta cultura. A mãe é leitora do poeta norte-americano Walt Whitman, autor de As folhas da relva, e o pai manifesta interesse pelos pensadores existencialistas e pelo ideário do alemão Karl Marx. Quanto à crítica da religião, o que aparece pela visão do narrador é um pai contra a tradição do monoteísmo cristão, mas simpatizado com as ideias de religião da antiga Grécia, onde os povos cultuavam deuses relacionados a mistérios antigos: “O interessante é que, mesmo na iminência da morte, permanecia absoluta-
mente ateu, contrariando frases proustianas de que a complexidade das circunstâncias transforma as virtudes humanas. Ele continuava assim, como sempre fora, acreditando na vida e na alegria orgíaca
dos amáveis deuses pagãos”.

O narrador fala de uma cidade do Sul, cujo frio é muito rigoroso, e faz uma crítica à falta de infra-estrutura para enfrentá-lo, talvez pensando nas condições que algumas cidades da Europa oferecem
aos moradores, por exemplo, o sistema de calefação das residências.

“A cidade era inenarravelmente fria e seus prédios e ruas não possuíam qualquer tipo de infra-estrutura que amenizasse aquele infortúnio climático”. Ao frio do inverno e da perda do pai, a novela transita pelo calor do primeiro contato físico do narrador numa reunião dançante e do desenrolar de uma paixão pela menina do rubi, colega de escola.

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