segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff e a de hoje é inédita.

Não estava entendendo


Dia desses acordei, estiquei os braços e abri uma boca imensa então perguntei à minha mulher Que domingo é hoje?, não me lembro qual era, mas descobri que tinha acordado exatamente como acordo sempre, um ser comum, sem grandes pretensões, um ser sem nada de diferente da maioria das pessoas. No meio de uma multidão, fico diluído nela, ninguém me conhece.

Bem, isso tudo era o que pensava e sentia até alguns dias atrás. E o anonimato em que vivia não me incomodava. Aliás, pelo contrário, sempre quis que fossem conhecidos meus livros, não eu. Como pessoa, pensava, não acrescento nada; com a literatura, bem, sempre tive a esperança de fazer para alguém alguma diferença.

Mas tive de sair do casulo, uma assinatura no banco, um par de chinelos na loja, uns litros de combustível no posto. E lá fui eu. Estacionei o carro atrás da igreja onde por sorte encontrei uma vaga, e saí rodando a pé pelo centro. Então fui saudado por um cidadão da mais alta linhagem da cidade, que fez questão de um shake hands inusual e eu, perplexo, segui meu caminho à agência do banco a dois quarteirões. Não dei dez passos, ainda perplexo, quando um jovem saindo de uma academia, músculos evidentes, e me cumprimentou, o mesmo que alguns dias antes tinha me chamado de velho gagá, agora postou-se na minha frente com aqueles músculos todos e só não me abraçou porque estercei o corpo e consegui me livrar de uma luta livre!, bem, me livrei do abraço, mas não do aperto de mão.

A cena repetiu-se ainda uma dezena de vezes até me convencer de que finalmente me davam, nesta cidade, a importância que talvez eu mereça, não estou muito certo disso, mas receber a atenção dos maiorais da cidade começou a inflar meu peito e foi com este imenso peito que voltei para casa. Estava ainda perplexo? Nem tanto. Agora começava a tecer uma nova imagem para mim. Eu passei de obscuro cidadão para a categoria dos mais populares, talvez dos mais respeitados cidadãos.

Em casa, relatei o que me acontecera naquele breve giro pelo centro da cidade, que até o dono do posto veio até mim perguntando se estava sendo bem atendido, se eu precisava de mais alguma coisa, que contasse com ele em caso de qualquer necessidade.

Minha mulher, muito mais plugada que eu na vida da cidade, quem sabe na vida em geral, soltou uma gargalhada que me deixou mais uma vez perplexo. ̶ Mas então você não se lembra de que este ano vai haver eleições municipais?

Desinflei meu peito, murchei e voltei para o anonimato em que posso trabalhar.

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