segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff.


As várias razões da felicidade


Passei três anos escrevendo um romance. Sei muito bem que um romance não se mede pelo número de horas passadas pelo autor na frente do micro, mas passei três anos escrevendo um romance. E hoje estou feliz. Você, meu infortunado leitor, você deve ter comparecido a todos os aniversários para os quais foi convidado; você deu-se ao incômodo de ver todos os filmes importantes desses três últimos anos e sentiu-se na obrigação de assistir aos principais espetáculos que aconteceram em sua cidade. Pois eu não. Perdi quase tudo porque passei três anos escrevendo um romance.

Mas escrever um romance proporciona um prazer que poucos mortais terão sentido. Chama-se a isso de júbilo da maternidade. Ou da paternidade, tanto faz. Então seguem-se queles meses de euforia em que se tem de negociar com as editoras. São meses de muita alegria, pois novas relações são estabelecidas, descobrem-se truques interessantíssimos, os horizontes se alargam.

Negócio fechado, a práxis usual é que o editor recompense o trabalho do autor com um advanced, nome que nos meios editoriais se dá a um adiantamento de direitos autorais. Depois de três anos escrevendo um romance, fiz eu também jus a um advanced. Dirijo-me ao caixa da editora com a cabeça cheia de contas, angustiado por não saber como gastar tudo no mesmo dia. Mas nós, escritores, somos pessoas muito felizes, pois contamos sempre com a ajuda do governo.

A princípio, quando li o recibo com a dentada do leão, não entendi bem o que se passava. Não demorei muito, contudo, para entender que o Leviatã já passara por ali, aliviando-me da obrigação tediosa de encontrar meios para consumir meu dinheiro. Enfim, eu só tinha passado três anos escrevendo um romance.

No caminho de volta para casa, fui tecendo na imaginação essas teias invisíveis com que se tece uma sociedade, sua economia, suas relações de poder, sua forma de organizar-se. E é por isso que hoje estou feliz. Agora sei quanto valho para a manutenção da vida em sociedade. Quando percebo que a saúde pública cobre todos os cidadãos (sem filas e com o que há de mais moderno na medicina), que a escola pública proporciona a todas as crianças, de todos os estratos sociais, um ensino de primeira classe, com professores satisfeitos e felizes como eu, quando viajo pelas estradas do meu país pensando que estou na Alemanha e vejo que a justiça é pronta e tem os olhos bem abertos, enfim, quando vejo tudo isso e penso que grande parte do que existe depende daquela mordida no meu recibo, que o leão não se acanha em dar, só posso ficar muito, mas muito feliz mesmo.

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