sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

CONTOS CORRENTES

ATÉ QUE PONTO

(Marlene Laky*)

Fiquei ali, parada no meio da sala segurando aquele bilhete estúpido…Godard me dizendo adeus. Aquilo não podia estar acontecendo, pelo menos não comigo… Minha vontade foi de dar meia volta, sair e ver se aquela cena onde fiquei ali congelada no tempo tivesse sido provocada por alguma alucinação… um baseado qualquer que eu tenha fumado em algum momento da vida. Efeito retardado. É possível.

Não sei por quanto tempo fiquei ali… As luzes douradas do entardecer já tinham esmaecido, tornando-se violáceas. As luzes de néon do velho hotel em frente piscavam irritantes iluminando meu semblante junto a janela… Apenas eu e aquele bilhete estupido, vazio… O último bilhete, as não palavras. Eu não conseguia fazer nada, a não ser respirar, aspirava aquele não momento e percebia
que nada acontecia dentro dele, mas… Eu ainda esperava que ele virasse a esquina com aquele jeito engraçado de um grande urso. Não mais.

Nas outras vezes que Godard partiu... E foram tantas partidas… Derramei tantas lágrimas, mas tantas lágrimas, que agora eu me sentia vazia, e nesse meu vazio minha tristeza ia sendo absorvida como uma esponja sedenta. Acabaram-se os Kleenex. Eu julgava que nossa vida tivesse o enquadramento perfeito dos antigos filmes de George Czukor… As cenas, o timing preciso… Mas acredito ter perdido os diálogos dentro desse roteiro. Alguma coisa não mais se encaixava.

Decidi beber, beber muito pra ver se aquietava a dor que meu coração espedaçado, destroçado, desfigurado estava sentindo. Ah, e como doía. Doía pra cacete. O gim descia pela minha garganta queimando, corroendo toda aquela angústia que estava entalada nas minhas entranhas. Ela tão enfeitiçada quanto eu, desafinava as notas com elegância numa velha canção que falava de amor. Mais um copo não iria me fazer mal. Apenas mais um. Mais outro. Bewitch, bothered and bewildered like me… Lost my heart.

Lentamente na minha letargia alcóolica tentava entender, aceitar, mas fui me partindo em mil pedaços… Me esparramando pelas tramas descoloridas do tapete persa, pensei em querer partir… Pra muito longe, minha vida, agora em ruínas, perdera todo e qualquer sentido agora que Godard se fora. Eu estava à deriva. Tudo porque escrevi um livro. Um livro idiota e de capa azul… Como seus olhos, com um teor tão grande de versos açucarados, que as palavras simplesmente escorriam feito caramelo de pudim ao ter as páginas viradas. Num impulso de gratidão… Escrevi ter sido ele o grande desembrulhador daqueles poemas bobos.

Malfadadas palavras que sentenciaram meu destino. Acabara-se. Finis. Sufoquei Godard com minha devoção. Nada mais daqueles fragmentos de cumplicidades partilhados em papéis rabiscados espalhados pela casa. O Neruda nunca lido… Por falta de tempo acabou esquecido, como a letra de Chico. Nada mais daquela cínica doçura acovardada… Encharcada de palavras e literatura. Nada mais da inquietude daqueles poemas escritos para alguém do passado. Como eu.

Meus dias se arrastariam num emaranhado de horas parecidas aonde eu ão mais distinguiria os minutos, segundos. Semanas, meses, anos ou séculos. O dia amanheceria, atravessaria a tarde, vararia a noite… Madrugada adentro, para encontrar a manhã seguinte e outra tarde e outra noite e madrugada. Com um pouco da sanidade que me restasse eu tentaria subornar meus neurônios amassados de que o destino havia se enganado de endereço. Outro CEP. Eu me afogaria em livros de auto-ajuda tentando entender os motivos que fizeram Godard partir… Questionaria… Contestaria até resgatar minha alma perdida naquele louco querer… Convenceria meu subconsciente através de mantras ancestrais que aquela dependência afetiva era letal… Ele não valia tudo isso, mas o meu eu malvado sempre diria… Até que ponto, hein? Naquele descompasso taquicardíaco que tanto assola os amantes em crise… O som da espera. Passaria a depender descaradamente da esperança de encontrar alguma mensagem no celular… Na secretária eletrônica, e-mail, MSN, bilhetes... Qualquer coisa… Um encontro casual a caminho do metrô… Engabelaria meu destino, venderia minha alma se fosse preciso para fazê-lo voltar.

As lembranças vão invadindo meu silêncio, na penumbra do apartamento vazio fico a olhar aquele retrato em preto e branco grudado na porta da geladeira amarela. Últimas férias na praia… Eu olho e pergunto: porquê? Teu olho escorrega pra fora pra longe do meu e não sei pra onde vai… Porque te escondes, mas mesmo assim me invades com essas migalhas que vais jogando… Aos poucos nos teus gestos… Memórias tristes, marcadas. Eu preciso desses farelos que têm me alimentado ao longo desse tempo, esse resto de sol… Senão anoiteço.

As pequenas rusgas eram sempre abandonadas… Esquecidas no meio do edredom... O nunca saber já não mais me perturbava… Nem mesmo quando ralhava comigo, por qualquer coisa... Me dizia que meu problema era talvez falar demais… Fazer coisas demais… Esperar demais... Shakespeare
sempre me socorria com sua célebre frase: “Ser ou não ser”... Não saberia dizer se era essa a questão.

Ainda tonta… Na penumbra daquela sala vazia, abri os olhos e me vi deitada no chão… Segurando numa das mãos o bilhete de Godard. Minha cabeça doía um pouco. O gim costuma ser fatal. A porta se abriu, e qual não foi minha surpresa quando ele entrou.
- Ah! Que bom que você achou o meu bilhete avisando que eu chegaria mais tarde para o jantar.
Eu ali perplexa, não entendendo nada, e tonta.
- A Zenaide vai ter de colocar os tapetes de outra maneira pra evitar acidentes...Você é meio desastrada.


* Marlene Laky é jornalista,formada pela Pucamp, autora dos livros " Mejias, lembrança de todos nós" e do "Poemas sem conservantes". É conservadora-restauradora do acervo bibliográfico do Museu Casa Guilherme de Almeida,onde também ministra oficinas de reparos de livros.Já participou de projetos na área de conservação no IEB-USP, ministrou palestras e oficinas em vários museus da capital interior, como Casa das Rosas,Oficina Mari de Andrade,Sesc -Ribeirão Preto, entre outros.

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