sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

CONTOS CORRENTES

A cicatriz de Olímpia

(Lúcia Bettencourt)

Seu corpo muito branco estava vestido de luz. Nua, desafiante, ela me olhava de frente, altiva. Não era bela, pois seu rosto era largo, quase quadrado, e seu pescoço grosso e forte. Embora não fosse alta, tinha um modo de olhar que só as pessoas de elevada estatura possuem, nos fazendo sentir diminuídos, pequenos.

A pose tinha sido escolhida por ela: quase sentada no divã, as costas apoiadas em grandes almofadas forradas de seda, com um xale espanhol que semeava de flores bordadas o assento e se despejava em franjas que pareciam fascinar o gato que atendia pelo nome de Napoleão. Ela havia retirado todas as peças de roupa, mas tinha conservado suas joias: um par de brincos de brilhantes e uma pulseira de ouro de cujo fecho pendia uma ametista, como uma grande lágrima roxa e sentida. O mais intrigante,
porém, era a fita de veludo amarrada com um laço displicente, do qual pendia uma medalhinha gasta de metal branco, sem brilho, de onde as figuras haviam desertado e deixado apenas traços que não permitiam sua identificação.

Percebeu que minha atenção estava toda voltada para a estreita fita de veludo, já gasto, mas não ofereceu uma explicação, nem sorriu. Conservou-se séria, encarando-me de frente, como as feras que avaliam suas vítimas antes do bote. Com um surpreendente senso estético, ela havia enfeitado os cabelos com um lenço de tons corais, que combinavam com a cor de seus lábios e das flores semeadas pelo xale. Os cabelos arruivados, que eram seu grande atrativo quando vestida, estavam presos, para não subtrair a atenção que seu corpo luminoso merecia.

O divã estava colocado, teatralmente, sob pesadas cortinas de seda verde, muito escuras, quase tanto quanto o forro marrom de veludo do canapé. Seu corpo, branco e leitoso, oferecia-se e, paradoxalmente, repelia-me. Ela não tinha se banhado recentemente, e sua pele exalava um cheiro acre, mistura de suor e sexo, um cheiro pulsante e vivo, que, aos poucos, tomava conta de todo o espaço e deixava-me inquieto, um pouco tonto.

Meu cavalete já estava montado, e iniciei o esboço da cena. As janelas fechadas deixavam o ambiente abafado, mas eu sabia que não podia me interromper naquele momento, pois talvez jamais tivesse outra chance de capturar aquela expressão tão condescendente em seu olhar debochado. Tentava, desesperadamente, acertar o tom da sua pele alva, estriada de suor mal removido. Concentrava-me em detalhes, pintando seu calcanhar encardido, sua mão pequena e gorducha, arredondada como um molusco disforme.

Ouvimos o som de uma campainha, e passos, mas minha atenção foi desviada para o ruído amortecido de seu chinelo de seda caindo de seu pé sobre o leito. Ela fez menção de voltar a calçá-lo, mas o contraste entre os dois pés, um envolvido pela pantufa e outro deixando apenas perceptível os artelhos, entre os tons claros que imperavam sobre o divã, sob a faixa escura da sola do calçado, era por demais plástico para que eu o deixasse escapar. E, ademais, dava à cena o vigor do instante fugidio, retirava do quadro a ideia de pose para introduzir a sensação de intimidade
surpreendida.

Nesse momento, a porta, atrás de mim, abriu-se vagarosamente, com um gemido queixoso e tímido. Voltei-me, aborrecido com a interrupção, mas descobri, emoldurada pelo umbral da porta, a figura que faltava em minha cena. A criada negra, com seus trajes soltos e claros, a pele tão escura que parecia engolir toda a luz que dela se aproximasse. Ela trazia nos braços um caro ramo de flores, oferecido por algum cliente agradecido, na esperança de voltar a usufruir os favores dispensados.

Indiferente, a patroa ordenou-lhe que colocasse as flores na sala, mas pedi-lhe que me permitisse pintá-las, bem como sua portadora. Ela refletiu por instantes, e uma luz maliciosa se acendeu em suas pupilas, mas voltou a se apagar. Dando de ombros, permitiu que a negra, uma haitiana cujo dialeto crioulo era incompreensível para quem não tivesse os ouvidos habituados, se acercasse. Foi ela mesma que decidiu o local onde a criada devia postar-se, percebendo, intuitivamente, o vazio da composição. E, num último ajuste, colocou a mão esquerda espalmada sobre seu sexo, retirando de vista a cicatriz rubra que antes ostentava tão desafiadoramente.

Protestei, mas ela me ignorou. Voltei então ao quadro, e percebi que o desenho formado pela sua mão era quase o de uma aranha que aguardasse, no meio daquela teia feita de luz e sombra, de peles e cheiros, por uma vítima distraída. Percebi que tinha a possibilidade de fazer um quadro perfeito: De um lado aquele corpo branco que, mais do que banhado em luz, parecia irradiar a própria claridade. Do outro, a negra, de pele tão escura que mal permitia que divisássemos suas feições. Totalmente vestida, exageradamente coberta por panos claros e excessivos, ela admirava a patroa
esplendorosamente desnuda, mostrando sua natureza artificial, fabricada, de uma civilização que se deixava representar pelo supérfluo das joias e sedas, e pela fugacidade das flores.

Napoleão, o gato, levantou-se e espreguiçou-se, entediado. Percebi que precisava me apressar, pois o equilíbrio perfeito da cena não tardava a se desmanchar. Mais algumas pinceladas, e depois teria que terminar o quadro de memória. Aquele instante nunca mais voltaria a se recompor. O gato saltou da cama e veio se esfregar em minhas pernas. A criada negra se agitava, impaciente com o calor da alcova. Somente ela se mantinha calma e estática, indiferente e altiva.

– Acabou?

Sua voz rouca, pesada e sensual, me fez estremecer. Em meu transe criativo fui conjeturando hipóteses para tudo, criando enredos que explicassem o xale, as joias, as escolhas. Só me faltava uma explicação para a velha e gasta fita de veludo e sua medalhinha desfigurada. Aquele não era um presente de admirador, era por demais modesto, mas seria muito banal atribuir o enfeite às reminiscências de uma infância e de uma inocência perdida. Ela concordou, zombeteira. Depois, em sua voz sensual, provocou-me, contando uma história do Terror. Aqueles que tinham parentes que
haviam morrido decapitados, passaram a usar uma fita negra no pescoço. Percebi, então, que aquela fita de intenções esnobes lhe dava uma dramaticidade que ela não tinha sido capaz de reconhecer. Era a marca de sua efemeridade. Ela estava condenada a desaparecer: era um último suspiro de uma classe que não voltaria a usufruir prestígio nem privilégio. Era a saudação dos marcados para morrer, que entram na arena se conformando com sua situação. Era um adeus dos tempos da graça e da beleza, que se desfiguravam como a medalhinha já sem feições.

Saí dali acabrunhado, mas, ao pisar na rua, o ar fresco e ainda gelado da primavera me revigorou. Os aromas pesados da alcova já não pairavam, sombrios, ao meu redor. E o dia ainda guardava uma luminosidade suave que me permitia ver as árvores que procuravam recobrir-se de folhas verdes de esperança. Tinha deixado a tela na casa de Victorine, não tinha como transportá-la ainda com as tintas úmidas. Dali a dias, já com o quadro em meu ateliê, retomaria meu trabalho e finalizaria uma obra que duraria mais que seu modelo. E desprezaria seu nome belicoso, ia chamá-la de Olímpia. Altiva, indiferente, alheia à sua própria condição mortal, ela viveria para sempre entre
os deuses.

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