quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

CRÍTICA LITERÁRIA

MÊS DO MENINO

(Wagner Coriolano de Abreu)

Os leitores brasileiros, que nos últimos anos descobriram a poesia de Fernando Pessoa, se lembrarão da heteronímia presente na obra poética, em verso e prosa, deste português de Lisboa, cuja vida transcorreu entre 1888 a 1935. Dentre os muitos nomes imaginários que Fernando Pessoa identifica como autor de suas obras, Alberto Caeiro compõe com Álvaro de Campos e Ricardo Reis uma tríade singular de poetas homônimos, aos quais apenas se junta com a mesma força o ortônimo Fernando Pessoa, autor de Mensagem, ele mesmo.

Alberto Caeiro escreveu o longo O guardador de rebanhos, uma reunião de quarenta e nove poemas, entre os quais, a narrativa de um sonho, no qual o menino Jesus foge do céu e vem morar entre os homens, no mundo. Este menino conta como funciona o céu e as relações com a família eterna. Finalmente, passa a morar no íntimo do poeta. São cento e sessenta e um versos para ninguém botar defeito.

À primeira vista, lido ou ouvido na voz do ator Paulo Autran, o poema revela ao leitor ou ouvinte uma diferente abordagem, em face deste tema envolto geralmente em reverência (Fernando Pessoa por Paulo Autran, Coleção Poesia Falada, Luz da Cidade Produções Artísticas). Não é para menos. O heterônimo Alberto Caeiro, homem de vida rural e ligado à natureza, faz uma severa crítica ao ideário do cristianismo e da instituição católica, que insiste em apresentar um retrato convencional desta pessoa de enorme sensibilidade humana.

58 SEMPRE AOS PARES


Passado o susto do relato, com sua blasfêmia infantil e seu antiespiritualismo absoluto, é possível sentir que o permanente reside na vida que se leva sem mistério, mas com a descoberta de que tudo vale a pena.

A leitura do poema, certamente, é rico exercício de paciência, na tentativa de superação de  preconceitos morais, àqueles que esperam ainda sentir, no mês do menino, a riqueza da sua mensagem. Às avessas, Caeiro nos dá outro rosto de Cristo, em meio a tantos que marcaram nosso imaginário, através da arte cristã, como bem ilustra Armindo Trevisan, em O rosto de Cristo: a formação do imaginário e da arte cristã. Aqui, se observa que as artes ampliam o horizonte de
conhecimento e remexem a sensibilidade, pois nos renovam a verdade.

O poema de Alberto Caeiro anuncia o fim de uma interpretação de história oficial. Em diálogo com outros poetas da natureza, por exemplo, com o autor de Cântico do sol e Cântico das criaturas, ele
polemiza para mostrar como é difícil aceitar a figura de Jesus Cristo, embora não consiga libertar-se dela: era nosso demais, diz o verso. Ao construir sua poesia em oposição aos cânticos de Francisco de Assis, Caeiro se aparta da concepção de mundo cristã e tenta colocá-la em questão. A simplicidade alcançada pelo pobrezinho, todavia, tornou-se uma obsessão de Caeiro, pois deu-se conta da impossibilidade de alcançá-la. Talvez, aí esteja o motivo de Álvaro de Campos chamá-lo
de “uma espécie de São Francisco de Assis sem fé”.

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