A morte do florista
A manhã estava fria e abafada ao mesmo tempo. Percebia que nesse ano, São Paulo havia resgatado seu cenário antigo de cidade da garoa, um ar londrino, comentavam. A névoa tornava os caminhos difusos. Naquela manhã, além da atmosfera nostálgica, havia um cheiro diferente, um perfume doce, muito forte, como se tivesse todo ele abandonado as flores, especialmente as rosas.
Encontrei a primeira jogada, desfalecida no passeio. Tinha certeza, a flor denunciava algo. O caminho estava mais silencioso que de costume, um silêncio sólido, sem gosto. Fui encontrando um rastro de rosas de todas as cores: o perfume no ar, a flor abandonada do seu cheiro no chão.
Meu coração palpitava diferente, eram muitas as rosas aniquiladas pelo caminho. Angustiava-me a possibilidade de não encontrar mais nenhuma na floricultura para que fosse encaminhada à minha
amada como todos os dias. Era sempre um botão graúdo, nem de todo fechado, que não pudesse revelar a exuberância das pétalas, nem aberto demais para que a flor não perdesse sua elegância e se perdesse no exagero da beleza fácil.
amada como todos os dias. Era sempre um botão graúdo, nem de todo fechado, que não pudesse revelar a exuberância das pétalas, nem aberto demais para que a flor não perdesse sua elegância e se perdesse no exagero da beleza fácil.
Assim era a mulher que amava: rosa única a perder de vista num jardim. Aquela que se destaca sem pretensão de ser exclusiva; sua presença nunca sobra, nunca é demais. Ela também não falta. Está lá, ao alcance, com o seu melhor.
O florista sabia escolher a flor a ser enviada a ela, diariamente. Colhia-a dos vasos, dos maços, das braçadas que preenchiam sua loja, a única, a escolhida, digna de ser oferecida à minha destinatária.
Apressei meus passos, temendo um acontecimento inesperado que impedisse o envio da rosa. Ao dobrar a última esquina, meu coração nublou; meus olhos e o movimento das pessoas na porta da floricultura confirmavam o presságio. Policiais! Sim, uma tragédia se revelava.
Teria sido assalto, vandalismo, atentado? aquelas rosas espalhadas no passeio... não tinha certeza se deveria me aproximar, temia confirmar o que se denunciava, talvez fosse melhor partir imediatamente à procura de um outro florista. No entanto, fui levado a desvendar o que se escondia naquela cena. Avancei, as pessoas abriram espaço e mesmo antes de entrar na loja, vi um par de pés jazendo ao lado da prateleira das rosas mais caras, de onde ele colhia a escolhida flor do dia. O policial me bloqueou, eu avancei resistindo, ele me deixou passar.
O florista tinha sofrido um mau súbito. Acreditava o garoto, entregador de flores, porque ele havia gritado por socorro e, em seguida, desabou. Eu permaneci mudo, não sabia o que mais me perturbava: se o florista morto ou o fato de minha amada não receber a rosa naquela manhã. Respondi ao policial que era apenas um cliente antigo quando quis saber se acaso era parente do florista.
Fiquei imobilizado por algum tempo... como conseguiria a rosa? Começou a chover forte, fechei a capa e ajeitei o chapéu, voltei-me para a rua, tinha de me apressar, pensar numa solução. Ao cruzar a porta, atordoado, o garoto chamou-me: moço, devo levar a rosa agora? O falecido disse para eu avisar o senhor que não precisa pagar a rosa de hoje, é um presente dele. Já posso levar?
*Patrícia Cicarelli - É contista e cronista. Jornalista, pós-graduada em Jornalismo Literário, escreve perfis, ensaios e memórias.
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