segunda-feira, 14 de setembro de 2020

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff. A de hoje é inédita.


Coisas da memória


Hoje cedo, começava a trabalhar quando me lembrei do Moacyr Scliar. Não me perguntem por quê, pois também não sei. Tentei descobrir alguma efeméride, qualquer data com que sua lembrança se relacionasse. E nada. Minha memória tem destas coisas estranhas, sobretudo quando se trata de amigos. Estive com esse cavalheiro, cavalheiro, sim, como poucos na literatura, diversas vezes, sempre em eventos onde cumpríamos o dever de estar onde o povo está.

E ao me lembrar do Scliar, dois episódios em que estivemos envolvidos foram acordados em minha memória. 

Em um desses episódios, o mais recente, foi em uma feira do livro de Ribeirão Preto. Fazíamos parte, os dois, de um salão de ideias e do alto do palco (estávamos no Auditório Meira Júnior) conversávamos com o público. A certa altura, alguém me fez uma pergunta de que não me lembro mais, alguma coisa acerca do que vinha produzindo naquele ano e respondi muito ingenuamente que até aquela data já havia parido metade de um romance. Na resposta que se seguiu, provavelmente a mesma, o Moacyr começou muito sério dizendo que por uma questão de gênero não poderia ter a mesma experiência que o Menalton. A plateia prorrompeu em gargalhadas e presumo que eu tenha ficado com cara de tomate. Meu riso, pra não ficar mais feio, foi tão amarelo que era melhor ter ficado sério.

A outra cena de que me recordo aconteceu há muito mais tempo, por ocasião de uma Bienal Nestlé. Fazia décadas que havia deixado Porto Alegre onde circulei por algum tempo no meio universitário e me lembrava de uma figurinha marcada que estava sempre em toda parte, e que chamávamos de Scliar. Não me lembro se ele era do Direito ou da Medicina, mas isso não vem ao caso.

Naqueles dias li no jornal que o Moacyr Scliar estaria na Bienal como convidado para uma das mesas. Décadas sem encontrar ninguém do meu tempo de URGS, me plantei no saguão, bem cedo e atento, ninguém entraria sem passar por mim. Quando vi certo cidadão entrando percebi que se tratava do Scliar, então o abordei: você não deve estar lembrado de mim, mas participamos de alguns eventos juntos. O Scliar havia publicado alguns contos em jornais de Porto Alegre, daí meu interesse.

O cidadão me olhou, enrugou a testa e ficou uns segundos em silêncio. Eu estranhei a estatura dele, seu corpo avantajado, mas fazia décadas que não o via, quem sabe, cresceu, encorpou, mas a fisionomia continuava, com pequenas alterações, a fisionomia do Scliar.

Por fim, desenrugou a testa e abriu um sorriso. Tu deves estar me confundindo com meu primo, o Vladimir Scliar. Que a gente conhecia como Scliar. E agora, arrasto a cara no chão? Não arrastei, e a partir daí nos tornamos amigos. Foi ele, o Moacyr, quem escreveu a apresentação do meu primeiro livro publicado por editora, a coletânea de contos À sombra do cipreste. Nos deixou, os amantes da literatura, com saudade.

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