quarta-feira, 16 de setembro de 2020

CANTIGAS DE AMIGOS

IX

(João Augusto)


“Assim como lavamos o corpo deveríamos lavar o destino, mudar de vida como mudamos de roupa — não para salvar a vida, como comemos e dormimos, mas por aquele respeito alheio por nós mesmos, a que propriamente chamamos asseio.”

(Fernando Pessoa, por Bernardo Soares, em O livro do desassossego)


Escutei que alguns lugares se movem
dentro de nós.
Vou me desfazendo de mim,
enquanto escrevo.
Para que o que tenha que passar, passe.
Mas guardo o que se prende em cada instante,
por medo de que me falte a sorte da eternidade.
Sou o mar irrompendo entre as fases da lua:
ao passo que cresço, minguo e recomeço.
O amor suspenso no peito do poeta.
No amor, em qualquer posição,
estamos sempre suspensos.
A vida a lavar o seu destino,
o meu destino, como Pessoa varria
as folhas da calçada,
nas manhãs portuguesas.
Não há nada que dure
nesses tempos estranhos.
Teu nome à sombra da paz e
dos pássaros.
Escrevo o fruto seco da poesia.
Ouve a voz dos sinos antigos.
Sigo, mesmo hoje,
o zepelim que sobrevoou
o meu passado.
Do que me é são,
tenho por certo que
minhas fadas envelheceram.
E estou tão velho
que já me ameninei de novo.
Traducere, do latim: conduzir,
pela mão, a algum lugar.
Onde há o verbo, um poeta é deus,
mesmo em seu ridículo universo.
Onde há gravidade, um aviador é deus,
mesmo que dentro de uma máquina.
Onde há a fantasia de amar,
qualquer um pode ser deus,
e fazer com que novos lugares se encontrem,
ainda que perdidos, no meio de nós.

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