segunda-feira, 19 de outubro de 2020

CARTAS DO INTERIOR

 Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff, umas inéditas, outras postadas anteriormente em seu site ou em revistas como Bula e Carta Capital.

Sobre a beleza

Quem pensa que a literatura se resume a uma historia - seja ela boa ou má - está completamente equivocado. A história é um de seus elementos, mas nem de longe é o único. Meu amigo Adamastor, que muita gente julga tratar-se de um gigante nascido no sul da África, me chegou ontem aqui em casa escandalizado com o que ouviu de um amigo seu. O tal lhe confidenciou que livro ele não guarda. Conhecida a história, não há por que folheá-lo novamente. O Adamastor não tem lá grande formação acadêmica, principalmente em assuntos de arte, mas sua intuição, aliada a algumas leituras sobre estética, lhe dá um desconfiômetro excepcional sobre algumas questões relevantes para o espírito humano.

Encomendei nosso café à Tétis, nossa jovem auxiliar por quem são frequentes as visitas do Adamastor, e nos acomodamos nas poltronas da biblioteca. Ele estava indignado com o que ouvira e precisava arranjar melhor seus argumentos. Então, questionou, onde está a razão?

Comecei explicando a ele que seu amigo não gosta de literatura, e se pensa que um romance se resume a uma historia (boa ou má, não interessa) está completamente equivocado. A história, que os semioticistas chamam de diegese, e nós, os mais conservadores, continuamos chamando de enredo, é um dos elementos da narrativa literária, mas muito longe de ser o único.

Se se parte do princípio de que literatura é arte, a arte da palavra, e me parece que isso é indiscutível, não se pode deixar de comparar sua fruição às maneiras com que nos ocupamos das outras artes. Ou o modo como elas nos ocupam.

A essa altura já tomávamos nosso café e o Adamastor apenas sacudia a cabeça concordando.

Respondeu que sim, que já ouvira dezenas, talvez centenas de vezes a Nona, do Beethoven. E concordou com minha sugestão de continuar ouvindo a mesma música sempre que surgisse a oportunidade. Ninguém, depois de ouvir qualquer música, joga o CD no lixo. Claro que não, se fosse assim não existiriam as discotecas. E rimos, os dois, porque o disco praticamente não existe mais, seria, portanto, necessário criar o termo cedeteca. Horrível, por sinal.

Então perguntei se ele já tinha visto Os Retirantes, do Cândido Portinari. Sim, sim, sim, ele já impaciente, querendo que eu chegasse logo ao fim, pois percebera meus exemplos argumentativos. E voltaria a contemplar a tela, claro. Ninguém joga uma tela fora depois de a haver observado, não é mesmo? E as pinacotecas continuam sendo visitadas como templos do prazer estético.

Toda verdadeira arte, foi a conclusão a que chegamos, tem na repetição de seu usufruto uma de suas características. Quantas vezes voltamos ao velho Machado para renovar o gozo de sua linguagem, de suas ironias, de suas construções frásicas inteiramente inesperadas. Ah, não, um livro se guarda sim, e seu lugar é na biblioteca, onde esteja sempre disponível.

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