quinta-feira, 15 de outubro de 2020

ORELHA

Esta coluna reune comentários de Menalton Braff a livros de outros autores, muitos deles publicados como orelhas dos respectivos livros. 

Uma vida em confidência


Alfredo Tavares é um poeta popular. Em seu opúsculo “A onça e a fome zero” qualifica-se de cordelista ao classificar seu texto de literatura de cordel. Mas não é um cordelista no sentido lato, em conteúdo e forma, e principalmente em forma. Os cordelistas que praticam o gênero de uma forma tradicional, aqueles que têm participado de concursos e outros certames congêneres, conhecem algumas regras fixas do cordel, como o verso redondilho maior, a estrofe conhecida como sextilha e seus esquemas de rimas mais usuais.

Acrescente-se, ainda, a forma narrativa, em geral, com unidade de ação. Se nem em conteúdo nem na forma, Alfredo Tavares é um cordelista ao pé da letra, existe nele, entretanto, uma verve do cordelista: seu caráter popular. O manejo da linguagem é o mesmo, não em seus aspectos formais fixos, mas no coloquialismo ingênuo e em passagens que a norma culta considera agramaticais. Neste sentido o autor tem toda a razão em autoclassificar-se como cordelista.

Mas a classificação, como quase sempre, é problema secundário e apenas serve à nossa necessidade de nominar os seres para os entender. O que temos, em “A onça e a fome zero”, é uma confidência, seja ela real ou ficcional. O eu-poemático faz uma espécie de balanço de sua vida, desde as agruras e misérias do sertão nordestino  em que, a despeito de tudo se sentia feliz  e os problemas encontrados no Sul. O choque da chegada a uma cidade incompreensível, o trabalho duro pela sobrevivência, a saudade dos familiares e dos amigos deixados no Nordeste. No meio, uma história de amor de final trágico (uma picada de cascavel, durante a colheita do café, rouba-lhe a amada).

É uma história comum a milhões de nordestinos que demandam o Sul do país em busca de uma vida melhor e que só encontram alguma satisfação material, porque seu chão, seus costumes, os seres humanos com que se identificam e até aquilo que comem, tudo ficou para trás e mergulham estes seres podados de seu tronco em profundo sentimento de perda, de saudade. É este o sentimento que vai dominar o texto em questão. Mas apesar de ser uma história conhecida, Alfredo Tavares consegue dar sua visão, seu modo particular de encarar a questão.

Do ponto de vista formal, são poemas com unidade temática, quase sempre, divididos como se foram verdadeiros cantos, no sentido épico do termo. Alfredo Tavares, consciente ou inconscientemente é um transgressor: suas estrofes são irregulares, os versos são livres e não há esquema rígido de rimas. Na verdade há uma grande quantidade de versos brancos. Ora, modernamente a transgressão vem sendo vista como virtude, e se assim é, essa é uma das virtudes do poeta Alfredo Tavares.

Nas últimas estrofes vai encontrar-se a vitória dos apelos telúricos, as raízes vão reclamar seu fruto. O nordestino retorna à casa paterna para encontrar várias cruzes (irmãos que lá ficaram) e para enterrar o próprio pai, que resistira até o encontro final com o filho. E lá ele fica, concluindo que lá é seu lugar.


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