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Alguém pode me dizer qual é a utilidade do amor? Até hoje
ninguém me convenceu. Ele, o amor, é inteiramente inútil. Como a vida. Não tem
utilidade. Ter filhos, amigos, tudo tão inútil como a arte. Uma ideia, esta da
inutilidade, que me parece ter comparecido em algum escrito de Kant. Na Crítica
da Razão Prática? Não sei. E essa ignorância em assuntos filosóficos me dá
coceira no corpo todo. Bem, se não foi o Kant alguém deve ter dito isso, e juro
que não fui o inventor.

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Texto republicado no Blog do Manoel Afonso |
Penso nessas coisas quando tenho de ouvir umas pessoas
dizendo que literatura é uma coisa inútil. Sou obrigado a concordar. Se amigo e
filho têm utilidade não são mais amigo e filho, passando à categoria de
instrumento. Enfim, servem para alguma coisa.
Apesar disso, continuo lendo, e cada vez com maior paixão. E
continuo vivo nem sei pra quê, pois se a vida também é inútil. Essa é uma
afirmação perigosa, em alguns sentidos letal, pois há pessoas que não se
interessam por coisa alguma que não tenha utilidade.
Pois bem, nem todos tiveram o prazer de ler “Morte e vida
severina”, de João Cabral de Melo Neto. Aquele final fabuloso, em que o mestre
carpina não consegue justificar por que continuar vivo. “.../mas se responder
não pude/à pergunta que fazia,/ela, a vida, a respondeu/ com sua presença
viva.” Tinha acabado de nascer um menino.
Ocorreu-me o poema ao ouvir a história de um amigo que tem
uma cadela. Uma cadela a quem jamais foi permitido o amor: ela vive confinada e
sozinha. E isso desde sua mais tenra infância (chavão exemplar: desde sua mais
tenra exige a companhia de infância). Há pouco tempo meu amigo ganhou um
filhotinho de cachorro e ficou com medo de que sua cadela o estraçalhasse com
uma bocada só. Era de uma raça bem diferente da raça da cadela.
Ele, meu amigo, tem uma nora veterinária, que o instruiu
sobre os procedimentos necessários, e lá foi meu amigo praticar zootecnia. A
cadela mostrou-se muito impaciente com os exercícios de aproximação que a nora
recomendou a meu amigo. Enfim, vencida a primeira semana de parcimonioso
convívio (de cheirar o pano sobre o qual dormia o filhote até deixá-lo ao
alcance da cadela foi um bom tempo) o filhote foi deixado no canil, mas ainda
sob a vigilância do novel proprietário de um filhote de cachorro. Sua companheira,
a companheira de canil, cheirou-o, deu umas lambidas e se afastou com um ar
difícil de ser interpretado. Não se sabia se aquela ruga na testa era de
curiosidade, ciúme ou indiferença. Ninguém arriscou uma opinião.
Pronto, mesmo assim, meio na ignorância dos sentimentos
caninos, a aproximação fora concluída com êxito. Pelo menos na aparência. No
dia seguinte, o dono dos animais foi conferir o resultado da manobra. Deitada,
a cadela era sugada por uma das tetas. Sem acreditar no que via, meu amigo pressionou
uma teta desocupada: saía leite. A cadela estava protegendo um ser vivo.
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