Como informei aqui no blog ontem, no mês de junho lemos O Processo, de Kafka, e no último domingo, 24/06, tivemos a discussão sobre a obra. Resultado dessa leitura é o texto que publicamos abaixo, produzido por Matheus Arcaro, um dos integrantes do grupo.


O PROCESSO, FRANZ KAFKA
O autor
O mais velho dos seis filhos de um casal judeu, Franz Kafka
nasceu em 1883 em Praga (atual República Tcheca). Formou-se em direito em 1906,
o que, obviamente facilitou suas abordagens acerca da linguagem judicial, a
burocracia, a lei e os processos, temas recorrentes em diversos romances seus.
Fato que ilustra a excentricidade do autor é que ele ficou noivo duas vezes da
mesma mulher, mas nunca se casou. O caráter autoritário do pai foi perturbador
na vida de Franz; uma relação que beirou a insanidade, revelada no texto
intitulado “carta ao pai”. Nesta carta, que conta com mais de mais de cem
páginas, Kafka explicita toda a sua dor e desabafa sobre cada ato vil do pai.
No ano de 1914 ele começou a escrever “O Processo”. Pouco tempo antes, duvidada
que ainda escreveria algo relevante, mas assim que o livro tomou forma,
observou ao amigo Max Brod: “Adquiri novamente um sentido. Minha vida regular,
vazia, insensata de celibatário tem uma justificativa.” Em 1917, Kafka sofreu a
primeira crise devido à tuberculose que o mataria sete anos mais tarde, aos 41
anos de idade. Em nenhuma fase da vida deixou de escrever. Certa vez afirmou a
Max que tudo o que não era literatura o aborrecia. Antes de morrer, pediu ao amigo que queimasse
todos os seus escritos, o que obviamente não foi feito, uma vez que a maior
parte de sua obra foi publicada postumamente.
O romance
Modesto Carone, escritor, ensaísta e tradutor de várias
obras de Kafka, afirma que “O processo”, um dos maiores romances do século, é
um fragmento inexato. Max Brod foi quem organizou o livro que permaneceu
inacabado como estava quando Kafka lhe entregou os escritos, em 1920. Após sua
morte, Brod o editou pelo que julgou
coerente e publicou o romance em 1925. Muito provavelmente esta organização não
é exata, pois há discrepâncias na cronologia da história. Carone cita vários
exemplos para sustentar esta imprecisão, dentre eles: o segundo capítulo,
intitulado “Primeiro Inquérito” se desenrola dez dias após a detenção do
protagonista Josef K. O capítulo quarto “A amiga da senhorita Bürstner” se
passa apenas cinco dias após este incidente. A estação do ano mencionada no
capítulo nono, “Na Catedral”, é outono, ao passo que no capítulo sétimo, “O
advogado. O industrial. O pintor”, já é inverno. Há também muitos capítulos
incompletos que poderiam entrar no romance se o próprio Kafka tivesse se
ocupado da finalização do livro. Um destes capítulos, intitulado “O promotor
Público”, (que consta no Apêndice da edição da Companhia das Letras) seria um
prelúdio ao romance, pois apresenta a vida do protagonista antes da acusação.
Feitas as apresentações, vamos à história. Sob o viés de uma
leitura referencial, ou seja, no âmbito denotativo, o romance narra um ano da
vida de Josef K., um bancário que é processado sem saber o motivo. Na manhã em que completa 30 anos, Josef foi
detido em seu próprio quarto por dois guardas. Toda a narrativa segue sem que
se conheça quem teria denunciado Josef K. às autoridades e o motivo de estar
sendo detido. Neste período são narrados
todos os “absurdos” advindos deste processo. Apesar disso, o personagem central
luta o tempo todo para descobrir a razão da acusação, quem o acusava e com
embasamento em que lei. Mas no final, sem ânimo, ele acaba por não reagir aos
senhores que o matam com uma facada no peito.
Todavia, não podemos nos contentar com esta explicação.
Afinal, toda grande obra de arte suscita inúmeras interpretações. Pois bem. Do
ponto de vista existencial, há quem sustente que o romance é uma alegoria: a
representação da culpa do homem moderno, já que não se trata de um processo
criminal numa corte de justiça convencional. Outros acreditam ser a ilustração
do homem “coisificado” pela burocracia e pelo aparelho judicial. Alguns
críticos, por sua vez, apoiados na detenção imotivada do protagonista, afirmam
que o romance é uma espécie de profecia do terror nazista que estava por vir e,
mais amplamente, uma denúncia a todos os regimes totalitários. De fato, “O
processo” foi escrito durante a Primeira Guerra Mundial e, de certo modo, adiantou
a angústia, a insensatez e o sentimento de absurdo que permeariam o combate.
Naqueles anos começava a cair por terra um projeto de humanidade forjado no
Iluminismo, um Ideal de homem livre, emancipado pela razão. Ainda sob a ótica
da existência, há intérpretes que defendem a ilustração do homem alienado,
controlado por um sistema doutrinador que a todo o momento lança informações
que são digeridas sem uma análise profunda. Do ponto de vista psicológico, as
desventuras de K., na verdade, não passariam de sonhos ou delírios de um
indivíduo solipsista, isolado e desolado.
Também são possíveis inúmeras relações com pensadores da
tradição filosófica. Com Marx, por exemplo, se enxergarmos Josef como a
engrenagem de um mecanismo que ele mal conhece; um indivíduo alienado e
“reificado” pelo sistema. Ou podemos caminhar em direção diferente se tomarmos
como referência Michel Foucault e a sua “Microfísica do Poder”, já que não se
sabe quem é o juiz ou quem de fato julgará Josef. Para Foucault, na lógica do
medo, o poder é diluído. Podemos ainda nos apoiar em Nietzsche, mais
especificamente em sua crítica ao racionalismo. Afirma ele que a razão não dá
conta da vida, sendo tirânica ao tentar reduzi-la a conceitos. “Conceitos nada
mais são do que metáforas que se esqueceram da sua origem”, sentencia o
pensador alemão. A relação é simples: o protagonista tenta o tempo todo
utilizar suas habilidades intelectuais contra o processo que, em si, nada tem
de racional. Inclusive, crítica semelhante à razão, faz Arthur Schopenhauer,
alguns anos antes de Nietzsche. Proponho, então, uma relação mais profunda do
romance de Kafka com este pensador. Schopenhauer, em meados do século XIX,
afirma que o que guia este mundo é uma força cega e irracional. Como ele
sustenta tal posição? Em sua obra “O Mundo como Vontade e Representação”, o
pensador estabelece duas instâncias para o Mundo: a representação e a vontade.
Todos os objetos do mundo nada mais são do que representações do próprio
sujeito. Tudo o que pertence ao mundo como presente, passado e futuro, existe
apenas para o sujeito e, por conseguinte, o mundo é representação que se
manifesta para e através da razão. (o mundo manifesto vivido por Josef K.). Mas
por trás da aparência ilusória do mundo como representação, Schopenhauer diz que
há o mundo em si mesmo, que ele chama de Vontade. A vontade transcende os
limites da experiência e não cede às estruturas do intelecto humano. É,
portanto, totalmente incognoscível. Só é possível aludir a ela por analogia,
porque o sujeito percebe a vontade em seu próprio corpo. Como adiantamos, a
Vontade é a essência de toda a aparência; é uma força cega e irracional que
atua no fundo do ser e não cede às formas da razão. E como a essência do mundo
é incognoscível, este se torna totalmente sem sentido. O destino individual não
possui nenhum significado, nenhum valor; o sujeito não passa de uma marionete
da vontade.
Do caráter vão da existência, do mundo sem razão, Schopenhauer
postula a total falta de sentido na existência. (O labirinto do qual Jose k. tenta
se desvencilhar traduz isso: a razão pouco ou nada pode contra a violência
irracional.) A arte teria o poder provisório de arrancar o indivíduo do seu
querer imediato, enquanto servo da vontade, e elevá-lo para a contemplação
desinteressada. E a tragédia é a arte por excelência, pois denuncia o caráter
pecador da toda existência, a crueldade da vida irracional, e serve como
estimulante catártico para a renúncia da vida. Afirma Schopenhauer: “Todas as
personagens das tragédias morrem purificadas pelo sofrimento, isto é, quando a
vontade de viver já esta morta nelas” Mas a saída definitiva não é pela arte,
mas pela moral: o homem não encontra razões suficientes para afirmar a vida e
precisa se dirigir implacavelmente à renúncia. Na ética da compaixão o sujeito
reconhece que ele e o outro nada mais são do que manifestações da mesma
vontade: carrasco e vítima são uma única coisa. Assim, a única possibilidade é
a negação completa do querer e a busca do estado de pleno ascetismo. (K. acaba
por aceitar o destino que lhe é imposto, quando espera pacientemente por seus
algozes)
Em suma, o romance inicialmente poderia nos impelir a
questionamentos como "que lei é essa?", "qual o crime cometido
por K.?", "qual a culpa dele?". Mas no final, percebemos que
estas são perguntas irrelevantes diante da irracionalidade da “Vontade”.
Em relação à forma do romance, podemos notar que a linguagem
é simples. É simples porque precisa ser, já que o enredo é complexo. A frase
inicial do livro elucida esta afirmação: “Alguém certamente havia caluniado
Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum.” Neste trecho
não há palavras incomuns, tampouco figuras de linguagem. Mas durante todo o
romance, tal fato não é nem confirmado nem negado. A lei que serve de parâmetro
para medir a culpa de K é totalmente oculta. O que foi afirmado no início do
romance perde a credibilidade e o leitor fica sem alternativas plausíveis. A
postura racional do leitor, em princípio estimulada pelo teor naturalista do
texto é incessantemente agredida por deslocamentos, sem que a coesão interna do
texto seja abalada. Kafka afirmou que sua intenção com este romance era fazer o
leitor se sentir “mareado em terra firme”. Conseguiu!
A obra se enquadra no que modernamente se denomina “Realismo
Mágico Metafísico”. O termo “realismo mágico” foi criado nos anos 20 pelo
crítico alemão Franz Roh, inicialmente com intuito de classificar as artes
plásticas, principalmente a pintura de De Chirico. O alemão definiu o realismo
mágico como a “amálgama de realismo e fantasia”. Na década de 50 Angel Flores
lapidou a definição: “o realismo é a transformação do comum e do dia a dia no
assustador e no irreal.” Não é exagero afirmar que o realismo mágico foi uma
reação contra a excessiva ênfase da racionalidade transmitida pela tradição
cartesiana, newtoniana, iluminista e positivista. Artistas como Picasso,
Kandinsky, Dalí e Braque se descolaram do realismo e do naturalismo, recriando
a realidade. Na literatura podemos destacar Proust, Joyce, Sartre, Camus,
Virginia Woolf, Samuel Beckett e, claro, Kafka. Profundamente influenciados
pela obra de Freud, a tônica destes artistas era liberar as forças criativas do
inconsciente. Posteriormente o realismo mágico foi subdividido em
“ontológico”, “antropológico” e
“metafísico” que, como adiantamos, é o caso de “O processo”. Pela técnica de
estranhamento, o realismo mágico metafísico induz o leitor a um senso de
irrealidade, por meio do qual uma cena familiar é descrita como se ela fosse
algo novo e desconhecido, mas sem lidar explicitamente com o sobrenatural. O
resultado é frequentemente uma atmosfera de uma perturbadora presença
impessoal. Esta impessoalidade soa paradoxal neste romance: apesar de o
narrador ser em terceira pessoa e não penetrar em profundidade no âmbito
psicológico de Josef, ele mantém o ponto de vista do protagonista; todos os
fatos, as descrições e os juízos passam pela subjetividade de K.
Kafka, com este romance e, de maneira geral, com toda a sua
obra, conseguiu traduzir o “zeitgeist” do início do século XX. Mais que isso,
conseguiu transformar em arte a existência. É como se ele gritasse aos ouvidos
dos homens de todos os tempos: somente com arte é possível suportar a
existência, o mais absurdo dos absurdos.
Muito bom!!!
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