sexta-feira, 13 de julho de 2012

XOBREGA

"Orlando era um homem simples, de poucas preocupações e quase nenhuma cogitação. Tinha cuidados para com a família, como a maioria tem. Não deixava que faltasse o essencial; ensinava-lhes o respeito para com os mais velhos; procurava fazê-los iguais a si próprio. Livre da boca do povo, estimado e respeitado. Mas disso não se poderia dizer que fossem preocupações. Seus cuidados eram pouco mais que instintivos; recebera-os por herança e em nada os modificara.

Além destes, tinha os cuidados para com os amigos que lhe mereciam dedicação e fidelidade absolutas. Praticava uma religião capenga, misturando santos e assombrações, catecismo e superstições. Acreditava nas palavras do padre Raimundo, mas não deixava de entregar suas feridas à benzedeira. Comandando tudo ficava Deus de um lado e Satanás do outro em um duelo sem fim. Para distrair-se do trabalho, as carreeiras em cancha reta, um joguinho de baralho aos domingos na barbearia, a bocha no armazém de Talarico, uma roda de chimarrão ou cachaça com boa prosa, a corrida atrás de um bicho mato a dentro, e acima de tudo uma peleia de facão ou porrete. Tinha pulso firme e quebrava o corpo com agilidade. era brigador famoso. Sua ambição era conservar tudo isso. No entanto, algum tempo atrás surgira aquela esperança inesperada: ver Carolina voltando da cidade com um título que impusesse respeito e admiração. Não tinha sonhos impossíveis, nem gastava imaginação em coisas desnecessárias. Mas neste ponto era intransigente; Carolina estava no colégio trabalhando, não fora por vontade sua, mas voltaria estudada. Era sua peleia com a vida."

Esse fragmento aí em cima pertence ao terceiro capítulo do romance XOBREGA, escrito nos idos de 1960/1970, como me lembrar? Um dia subi a escadinha de um prédio, pois tinha a indicação de onde poderia encontrar um editor. Era lá que a Ática estava começando. Se não me engano ficava em frente à praça Carlos Gomes, em São Paulo. Há pouco chegara do Rio Grande do Sul e trazia o sonho de ser o escritor do meu estado. A Bahia tinha o Jorge Amado, Minas se orgulhava do Guimarães Rosa, a Raquel representava o Ceará. O Rio Grande do Sul estava nas páginas do Erico Verissimo, mas eu ainda achava que poderia ser o escritor de uma região não cogitada pelo Erico, a região serrana (São Francisco de Paula descendo para Osório e passando por Santo Antônio da Patrulha). Era o Rio Grande mais pobre, de pequenos agricultores que eu queria mostrar.
O Jiro Takahashi, era ele o editor, me recebeu como se eu fosse um escritor, e isso me encheu de orgulho e esperança. Entreguei-lhe os originais de XOBREGA, dei a ele meu telefone e voltei pra casa.
Duas semanas depois, o Jiro me ligou, pedindo que comparecesse à editora. E lá fui eu, tremendo de ansiedade, mas cheio de esperança.
Me serviu um cafezinho, conversamos sobre literatura, então me entregou o laudo do parecerista. Imagino que naquela época o parecerista fosse o próprio Jiro. Bem, o parecer não recomendava a publicação. E minhas pernas tremeram novamente. Um texto curto, mas extremamente cortês, qualidade do editor até hoje. No fim, a pergunta: qual a relevância de publicar XOBREGA?
Voltei pra casa com o coração miúdo e aquele laudo com uma pergunta fatal.
XOBREGA nunca foi publicado, e guardo ainda as folhas amareladas pelo tempo.
Hoje não me atrai mais o regionalismo nem tenho a pretensão de ser o escritor de lugar nenhum, mas continuo a me perguntar: qual a relevância do que escrevo? Não sei a resposta, mas sei que, por irrelevante que seja, é o único jeito que sei viver.

2 comentários:

  1. Aplausos a Menalton Braff pela linda declaração e pela generosidade ao partilhar um episódio de sua história.

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    1. Lindo é seu comentário. Obrigado pela visita, Eliane.

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