Belmiro deixou um pouco de seus
lábios na face da esposa e na testa do
filho. Seu beijo, que jazia sete anos sem uso, nem assim era urgente. Chegou
feito uma novidade, de repente num fim de tarde, pois ninguém naquela casa ficara
sabendo da redução da pena. Por bom comportamento.
Cumprimentou os dois com mão
distraída, atravessou a sala e foi até o quarto do casal. A cômoda estava no
mesmo lugar, depois de tantos anos. Abriu a segunda gaveta, enfiou a mão e
retirou o suficiente para o ônibus, uma cerveja e o maço de cigarros.
Violeta continuou bordando com a luz acesa, que a claridade já não
conseguia atravessar as rendas imóveis da cortina. Ela ali sentada em companhia
do filho, que viajava pelas páginas de um gibi, ela não gritou muito roxa mas
você nem acabou de chegar, não chorou de saudade ou surpresa. Violeta conhecia
os atalhos todos tomados pelo marido desde os tempos e mantinha o coração
atento, à espera.
Belmiro atravessou a sala de volta, na direção da porta, enquanto sua mão
direita empurrava o dinheiro para o fundo do bolso. Um acerto de contas, ele
disse como se estivesse falando sozinho, antes de deixar a marca de seus dois
lábios na face e na testa da mulher e do menino. Os dois cruzaram um olhar
rápido e insignificante, meio morno até, olhando-se um pouco porque o homem não
disse mais nada e saiu, mas sem outra reação, tão treinados já andavam em suas
solidões.
Trêmulas e indecisas, as primeiras sombras da noite entraram atrás de
Belmiro no bar do Romeu, onde sempre. A distância e com discrição, os dois
cumprimentaram-se. Um morcego, com seu par de asas angulosas e seu vôo
trepidante, agitou o ar amarelado, de lâmpada vagabunda, do bar, passou rente
às garrafas das prateleiras e saiu por uma janela em busca de mais noite. A
mesa dos fundos estava escondida por baixo de uma toalha xadrez enxovalhada,
com nódoas de bebidas e negras cicatrizes de cigarros. Era lá, por trás da
treliça. Belmiro observou que a única diferença era o vaso solitário de uma
begônia encarquilhada sobre um suporte de ferro, ao lado da mesa. A begônia
sufocava entre tocos de cigarro.
Depois de olhar atentamente em volta e ver que dali dominava a entrada,
Belmiro puxou a cadeira para fora da mesa e sentou-se para o descanso. Então,
com alguma dignidade, ele cruzou as sobrancelhas como se quisesse pensar na
mulher e no filho, principalmente no filho, por isso inventou duas rugas na
testa. Suas mãos estendidas sobre a toalha xadrez permaneceram algum tempo
inertes, fingindo-se de mortas sob um olhar denso, quente, o modo de
observar-se desde as extremidades.
A idéia da frieza com que tinha tratado a família era grossa e pesada a
ponto de lhe arrancar um pigarro. Pigarreou com a boca aberta, ruidoso. Mais
tarde, depois de tudo resolvido. Foi com esse pensamento que se apaziguou − a
consciência deitada, dormindo à sombra de uma árvore. Não tinha muito que
pensar, por isso abandonou a posição forçada da sobrancelha e desenrugou a
testa. Era preciso concentrar-se na espera, coisa com a qual nunca lidara muito
bem. Então, ficar ali sentado olhando as mãos sem progredir muito em nenhum
pensamento, Belmiro concluiu que poderia ser seu modo de concentrar-se na
espera.
Pediu um maço de cigarro e uma cerveja quando o garçom apareceu.
Aproveitou para remexer as nádegas na cadeira, como se a partir daquele pedido
sua presença ali estivesse homologada. Um tal pedido legitima o espaço ocupado,
por isso Belmiro respirou com mais desenvoltura, um pouco sócio do Romeu: com
direitos.
Há quanto tempo não tomava uma cerveja? O glub-glub em sua garganta era
apreciado como uma canção: Belmiro ouvia-se com prazer. A fumaça do cigarro,
contudo, mais leve que o ar, buscava atalhos por canais pouco usados, aqueles
interiores, e saía por todos os orifícios da cabeça.
Um aborrecimento quase sem cor, apenas um pouco azulado, repontou na
testa em que duas rugas apareceram novamente. Não precisava ser tão frio com o
moleque. Quando fechou na saída a porta da sala, foi bem isso que se atravessou
em seu pensamento. Que não precisava ser tão frio. Está certo que tinha
esperado sete anos por este acerto de contas, mas não precisava. Por isso
apagou com raiva o toco de cigarro, amassando sua cabeça vermelha na terra do
vaso onde a begônia definhava. Não precisava mesmo. Mas também sete anos, já pensou?
Sete anos não é pouca coisa. Nem tinha visto o sacana crescer. Sua cara, agora,
hein! Minha cara. Pelo menos um abraço. A gente tem um filho. Entre seus
companheiros, alguns, pelo menos, era assim: de mulher o mundo está cheio, mas
filho, filho é sagrado. Um só que fosse, já era um abraço.
Umas figuras familiares: o careca de cavanhaque e tatuagem no braço, o
baixinho da sinuca com seu olho direito quase fechado, o magro, muito magro,
que falava portunhol, mais duas ou três fisionomias que entraram no bar por
cima dos ares e que foram observadas pelo olho atento de Belmiro. Envelhecidos,
pensou, contemplando as próprias mãos. Em seguida foi a vez de Rivaldo entrar
ao lado de Samurai, os dois conversando alto, muito habituados, sem o clichê
dos gestos suspicazes, tão cinematográficos. Belmiro teve uma contração na
perna direita, como sempre, e sentiu um princípio de cãibra nos músculos
flácidos da barriga. Espremeu os olhos com duas pálpebras intensas por baixo daquelas
rugas, que lhe voltaram à testa. Lambeu os lábios secos uma, duas vezes, mas
rapidamente, enquanto eles não se aproximavam.
Enfim, um acerto de contas.
Os dois arrastaram as cadeiras para fora da mesa, ao mesmo tempo e
ostentando a mesma insolência. Samurai acabou de sentar e comentou, Quanto
tempo, hein? Sete anos, Belmiro respondeu. Sete anos. E esvaziou os pulmões com
um sopro barulhento como viagem de avião.
Depois de uma pausa para acenderem três cigarros, os respectivos, Belmiro
encarou Rivaldo por baixo da fumaça e perguntou, Vocês trouxeram minha parte?
Há perguntas que não devem ser feitas porque machucam, ou deve-se
fazê-las apenas depois de rodeios em volta do assunto, para não assustar.
Rivaldo, com os olhos muito abertos e as sobrancelhas muito erguidas,
perguntou, O que é que você disse? E falou alto demais, como se fosse surdo de
nascença. Só então Belmiro percebeu que a orelha esquerda do companheiro havia
caído sobre a mesa, sujando um pouco de sangue a toalha xadrez encardida.
Samurai falou com seus lábios grossos, mas não conseguia emitir voz
nenhuma. Coçou o peito escuro com unhas grandes. Tentou falar novamente, mas
ele mesmo não se ouvia. Enfim, gente, o que vieram fazer aqui? Belmiro não
deveria ter gritado daquele jeito, pois o que lhe restava ainda de lábios desmanchou-se
dentro da mão que tinha levado á boca, em proteção.
O primeiro olho de Samurai caiu sobre a mesa e rolou redondo até perto de
Belmiro, para ficar ali, parado, olhando fixo sem piscar. Com um tapa
assustado, Belmiro fez o olho voar até o meio do salão. Seu gesto exagerado
partiu ossos, músculos e tendões do braço esquerdo, deitado agora sobre a
toalha encardida, muito exposto, seu braço inteiro.
O garçom ainda conseguiu receber uma nota de cinqüenta para acertar as
contas, mas quando veio devolver o troco, só encontrou algumas manchas escuras
sobre a mesa e as cadeiras.
(Do livro Jardim Europa, inédito)

Maravilhoso blog amigo ... fui indicada por um amigo , e estou muito feliz em estar por aqui...
ResponderExcluirsiga me tbm....http://clarafernandopolis.blogspot.com.br/
aguardo tua presença...
Já visitei seu belíssimo blog. Gostei das animações e principalmente dos textos. Parabéns, Maria Clara.
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