quarta-feira, 8 de agosto de 2012

UM CONTO

Acerto de contas
Belmiro deixou um pouco de seus
lábios na face da esposa e na testa do filho. Seu beijo, que jazia sete anos sem uso, nem assim era urgente. Chegou feito uma novidade, de repente num fim de tarde, pois ninguém naquela casa ficara sabendo da redução da pena. Por bom comportamento.
Cumprimentou os dois com mão distraída, atravessou a sala e foi até o quarto do casal. A cômoda estava no mesmo lugar, depois de tantos anos. Abriu a segunda gaveta, enfiou a mão e retirou o suficiente para o ônibus, uma cerveja e o maço de cigarros.  



Violeta continuou bordando com a luz acesa, que a claridade já não conseguia atravessar as rendas imóveis da cortina. Ela ali sentada em companhia do filho, que viajava pelas páginas de um gibi, ela não gritou muito roxa mas você nem acabou de chegar, não chorou de saudade ou surpresa. Violeta conhecia os atalhos todos tomados pelo marido desde os tempos e mantinha o coração atento, à espera.
Belmiro atravessou a sala de volta, na direção da porta, enquanto sua mão direita empurrava o dinheiro para o fundo do bolso. Um acerto de contas, ele disse como se estivesse falando sozinho, antes de deixar a marca de seus dois lábios na face e na testa da mulher e do menino. Os dois cruzaram um olhar rápido e insignificante, meio morno até, olhando-se um pouco porque o homem não disse mais nada e saiu, mas sem outra reação, tão treinados já andavam em suas solidões.
Trêmulas e indecisas, as primeiras sombras da noite entraram atrás de Belmiro no bar do Romeu, onde sempre. A distância e com discrição, os dois cumprimentaram-se. Um morcego, com seu par de asas angulosas e seu vôo trepidante, agitou o ar amarelado, de lâmpada vagabunda, do bar, passou rente às garrafas das prateleiras e saiu por uma janela em busca de mais noite. A mesa dos fundos estava escondida por baixo de uma toalha xadrez enxovalhada, com nódoas de bebidas e negras cicatrizes de cigarros. Era lá, por trás da treliça. Belmiro observou que a única diferença era o vaso solitário de uma begônia encarquilhada sobre um suporte de ferro, ao lado da mesa. A begônia sufocava entre tocos de cigarro.
Depois de olhar atentamente em volta e ver que dali dominava a entrada, Belmiro puxou a cadeira para fora da mesa e sentou-se para o descanso. Então, com alguma dignidade, ele cruzou as sobrancelhas como se quisesse pensar na mulher e no filho, principalmente no filho, por isso inventou duas rugas na testa. Suas mãos estendidas sobre a toalha xadrez permaneceram algum tempo inertes, fingindo-se de mortas sob um olhar denso, quente, o modo de observar-se desde as extremidades.
A idéia da frieza com que tinha tratado a família era grossa e pesada a ponto de lhe arrancar um pigarro. Pigarreou com a boca aberta, ruidoso. Mais tarde, depois de tudo resolvido. Foi com esse pensamento que se apaziguou − a consciência deitada, dormindo à sombra de uma árvore. Não tinha muito que pensar, por isso abandonou a posição forçada da sobrancelha e desenrugou a testa. Era preciso concentrar-se na espera, coisa com a qual nunca lidara muito bem. Então, ficar ali sentado olhando as mãos sem progredir muito em nenhum pensamento, Belmiro concluiu que poderia ser seu modo de concentrar-se na espera.
Pediu um maço de cigarro e uma cerveja quando o garçom apareceu. Aproveitou para remexer as nádegas na cadeira, como se a partir daquele pedido sua presença ali estivesse homologada. Um tal pedido legitima o espaço ocupado, por isso Belmiro respirou com mais desenvoltura, um pouco sócio do Romeu: com direitos.
Há quanto tempo não tomava uma cerveja? O glub-glub em sua garganta era apreciado como uma canção: Belmiro ouvia-se com prazer. A fumaça do cigarro, contudo, mais leve que o ar, buscava atalhos por canais pouco usados, aqueles interiores, e saía por todos os orifícios da cabeça.
Um aborrecimento quase sem cor, apenas um pouco azulado, repontou na testa em que duas rugas apareceram novamente. Não precisava ser tão frio com o moleque. Quando fechou na saída a porta da sala, foi bem isso que se atravessou em seu pensamento. Que não precisava ser tão frio. Está certo que tinha esperado sete anos por este acerto de contas, mas não precisava. Por isso apagou com raiva o toco de cigarro, amassando sua cabeça vermelha na terra do vaso onde a begônia definhava. Não precisava mesmo. Mas também sete anos, já pensou? Sete anos não é pouca coisa. Nem tinha visto o sacana crescer. Sua cara, agora, hein! Minha cara. Pelo menos um abraço. A gente tem um filho. Entre seus companheiros, alguns, pelo menos, era assim: de mulher o mundo está cheio, mas filho, filho é sagrado. Um só que fosse, já era um abraço.
Umas figuras familiares: o careca de cavanhaque e tatuagem no braço, o baixinho da sinuca com seu olho direito quase fechado, o magro, muito magro, que falava portunhol, mais duas ou três fisionomias que entraram no bar por cima dos ares e que foram observadas pelo olho atento de Belmiro. Envelhecidos, pensou, contemplando as próprias mãos. Em seguida foi a vez de Rivaldo entrar ao lado de Samurai, os dois conversando alto, muito habituados, sem o clichê dos gestos suspicazes, tão cinematográficos. Belmiro teve uma contração na perna direita, como sempre, e sentiu um princípio de cãibra nos músculos flácidos da barriga. Espremeu os olhos com duas pálpebras intensas por baixo daquelas rugas, que lhe voltaram à testa. Lambeu os lábios secos uma, duas vezes, mas rapidamente, enquanto eles não se aproximavam.
Enfim, um acerto de contas.   
Os dois arrastaram as cadeiras para fora da mesa, ao mesmo tempo e ostentando a mesma insolência. Samurai acabou de sentar e comentou, Quanto tempo, hein? Sete anos, Belmiro respondeu. Sete anos. E esvaziou os pulmões com um sopro barulhento como viagem de avião.
Depois de uma pausa para acenderem três cigarros, os respectivos, Belmiro encarou Rivaldo por baixo da fumaça e perguntou, Vocês trouxeram minha parte?
Há perguntas que não devem ser feitas porque machucam, ou deve-se fazê-las apenas depois de rodeios em volta do assunto, para não assustar. Rivaldo, com os olhos muito abertos e as sobrancelhas muito erguidas, perguntou, O que é que você disse? E falou alto demais, como se fosse surdo de nascença. Só então Belmiro percebeu que a orelha esquerda do companheiro havia caído sobre a mesa, sujando um pouco de sangue a toalha xadrez encardida.
Samurai falou com seus lábios grossos, mas não conseguia emitir voz nenhuma. Coçou o peito escuro com unhas grandes. Tentou falar novamente, mas ele mesmo não se ouvia. Enfim, gente, o que vieram fazer aqui? Belmiro não deveria ter gritado daquele jeito, pois o que lhe restava ainda de lábios desmanchou-se dentro da mão que tinha levado á boca, em proteção.
O primeiro olho de Samurai caiu sobre a mesa e rolou redondo até perto de Belmiro, para ficar ali, parado, olhando fixo sem piscar. Com um tapa assustado, Belmiro fez o olho voar até o meio do salão. Seu gesto exagerado partiu ossos, músculos e tendões do braço esquerdo, deitado agora sobre a toalha encardida, muito exposto, seu braço inteiro.
O garçom ainda conseguiu receber uma nota de cinqüenta para acertar as contas, mas quando veio devolver o troco, só encontrou algumas manchas escuras sobre a mesa e as cadeiras.  

(Do livro Jardim Europa, inédito)
  

2 comentários:

  1. Maravilhoso blog amigo ... fui indicada por um amigo , e estou muito feliz em estar por aqui...

    siga me tbm....http://clarafernandopolis.blogspot.com.br/


    aguardo tua presença...

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    1. Já visitei seu belíssimo blog. Gostei das animações e principalmente dos textos. Parabéns, Maria Clara.

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