Anoitecendo
Mais de duas horas aqui sentados neste barranco de rio sem
qualquer sinal de vida, qualquer mensagem, as boias ali à toa na superfície da
água, nos encaramos desistentes. As promessas não se cumpriam, apesar de nossa
paciente insistência. O sol, estilhaçado e frio, cai sobre o remanso de onde
esperávamos alguma notícia. É um momento meio triste, pois o dia definha
irreversível e com alguma lentidão: morrente.
Sabe o quê, a gente, pra não perder a viagem, ainda pode
nadar um pouco. E as roupas começam a voar para cima dos arbustos. Mas eu não
sei nadar muito bem, alega meu amigo para justificar sua relutância
em se jogar na água. Mesmo assim, já está pelado, a pele branca arrepiando-se com a brisa que desce das copas escuras, então arroja seu corpo de pele branca na direção da água e levanta um turbilhão de pingos que aproveitam os restos do dia para brilhar no espaço antes de se misturar novamente ao sorvedouro. A água é quase sempre uma alegria do corpo: o prazer despudorado.
em se jogar na água. Mesmo assim, já está pelado, a pele branca arrepiando-se com a brisa que desce das copas escuras, então arroja seu corpo de pele branca na direção da água e levanta um turbilhão de pingos que aproveitam os restos do dia para brilhar no espaço antes de se misturar novamente ao sorvedouro. A água é quase sempre uma alegria do corpo: o prazer despudorado.
Soltei os braços puxando o rio para trás, com a velocidade
de quem quer chegar: o fingimento dos músculos. A cabeça ora afundava ora
emergia acima da correnteza, os pés em movimentos rápidos, um ritmo só.
Atravessei o remanso e o sorvedouro, e de lá, do outro lado, aonde o mato vem molhar
os pés, grito para meu amigo que não tente a mesma reta. O caminho mais longo
pode ser o mais seguro. Volto na mesma velocidade pela parte mais funda do rio,
atravesso a correnteza e subo a uma pedra escura em função de plataforma. Do
alto, aonde cheguei em poucos segundos, solto um berro de vitória: guerreiro.
Então me jogo novamente no rio.
Os primeiros
movimentos do meu amigo, ainda hesitantes, mantêm a margem a duas, três braças
de distância. Dali, de perto do barranco, também solta gritos alegres e agudos
enquanto bate com as mãos abertas na superfície do rio, orgulhando-se dos
pingos que seus gestos criam, parecendo fogos de artifício. Seus cabelos, em
pasta, lhe caem sobre a testa, escorrentes, e o brilho dos olhos, sóis de
sombras, contrastam com o branco das duas fileiras de dentes fortes, canibais.
A vida oferece prazeres que muitas vezes jazem escondidos à beira da
simplicidade, disfarçados. Mas é preciso descobri-los para poder sugar a seiva
que nos sustenta. Por isso a volúpia dos desafios: as vertigens.
A noite vem descendo pelas encostas dos morros mais
próximos.
Nós dois nos encontramos em águas mais rasas, de pé com
nossos corpos molhados, e brincamos ainda de respingar pedaços de rio um no
outro, com gargalhadas de brilho idêntico ao da água com que nos
divertimos. E assim é que vai nascendo o
entusiasmo e a coragem: nós dois nos sentimos vivos em cada gesto e em cada
riso gorgolejado com que afastamos todas as preocupações.
Cansado de tanta brincadeira infantil, por fim, me jogo novamente
de peito na água e com braçadas ágeis e fortes atravesso o sorvedouro, que
tenta sugar tudo para seu estômago, fruindo até o fundo o poder de meus braços.
Existe algo de exibicionismo em meus movimentos, causa da satisfação que me dá
a demonstração deste meu poder.
A noite parece mais próxima e agora tenho a impressão de que
ela sobe das pedras que apenas imagino cobrindo o leito do rio.
Já me apetece voltar à terra
e enxugar com vento meu corpo. E procuro a mancha clara de meu amigo,
mas apenas vejo dois braços erguidos descrevendo a grande circunferência do
sorvedouro, lutando por manter-se na superfície. Então percebo a noite que se
deita sobre o rio e, com três braçadas que me arranco dos ombros, consigo
segurar meu amigo pelos cabelos.
Disponho agora de somente um braço com que enfrentar o
movimento das águas, mas não posso abrir a mão esquerda, onde está presa a
mecha de cabelos. Vamos os dois sendo arrastados dentro do círculo do
sorvedouro.
Ao sentir-se ajudado, meu amigo usa os dois braços para se
salvar usando minha força. Tolhidos meus movimentos, não resistimos mais à
fúria do rio. Consigo finalmente liberar o braço direito e faço a única coisa
que se pode fazer nas circunstâncias: dou um murro na cabeça de meu amigo para
desacordá-lo. Mas ele já está com os dentes cravados no meu braço esquerdo e me
vejo forçado a um segundo murro.
Seus braços me soltam, flácidos, e, na boca fechada, ele
carrega um pedaço de meu corpo. Não tenho tempo de pegá-lo novamente e mal vejo
que meu amigo afunda, desaparecendo quase instantaneamente. Já é noite. Noite sem lua.
Consigo voltar ao barranco, mas alguma coisa de mim sumiu no
abismo.

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