sexta-feira, 23 de novembro de 2012

FRAGMENTOS DE ROMANCES

Fragmento de meu romance Castelos de Papel, publicado pela Nova Fronteira em 2002.



Levantou os olhos do jornal e inundou a cidade num indiferente olhar azul, seu olhar vidrado, quase aborrecido. De uma forma vagarosa e distraída, como quem  já não tem mais pressa de chegar, porque já não tinha mais pressa de chegar. Nem aonde. Ecoava ainda no interior de seus ouvidos o desconforto de um chamado ou sua impressão, e era impossível ter certeza. Tentando concentrar-se para descobrir que apelo poderia ser aquele, seu pensamento perdeu-se por alguns instantes em coisas miúdas que lhe entulhavam os olhos, como o motorista manobrando o carro para ocupar uma vaga menor do que o carro, seu modo brusco de gesticular, o avião que passou e se escondeu atrás de uns edifícios, a felicidade do cachorro ao voltar com o bastão entre os dentes. Não chegou a formular uma síntese do que via ou sentia. Não eram propriamente pensamentos, mas sucessão de imagens descosidas: o instante. Estivera lendo, bem sabia, e a prova disso eram as palavras que ainda boiavam em seus olhos. Abertos ou fechados. Mas eram palavras, apenas, sem qualquer ligação entre si. Negras e oscilantes, voavam sem formar fila: bando caótico. Não chegavam a compor uma frase. Por isso, não sabia, não conseguia lembrar o que estivera lendo antes de levantar os olhos do jornal. E inundar a cidade com seu olhar azul.

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