Continuamos com a leitura de Macunaíma:
Pág. 35 - "No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu."
A muiraquitã, uma rã de pedra verde translúcida, foi adotada como amuleto.
"Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado pelo séquito de araras vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci. 'Marvada!' que ele gemia... Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando cânticos de longa duração..."
O verbo gauderiar é regionalismo gaúcho e significa andar mais ou menos sem rumo.
"(Maanape) Catava os carrapatos do herói e o acalmava balançando o corpo. O herói acalmava acalmava e adormecia bem.
No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras vermelhas e jandaias.
Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver. Andaram légua e meia e encontraram uma cascata chorando sem parada. Macunaíma perguntou pra cascata:
- Que é isso!
- Chouriço!
- Conta o que é.
E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela."
Esta é uma lenda encontrada na Foz do Iguaçu, a lenda da boiúna Capei, uma cobra gigante.
A cascata então relata que era uma cunhã muito linda e todos os tuxauas (chefes) queriam dormir com ela, mas a dentadas e pontapés ela os espantava.
Pág. 37 - "Quando meu corpo chorou sangue pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço titçatê guerreiro de meu pai. a tristura talqualmente correição de sacassaia viera na taba e devorara até o silêncio.
Quando pajé velho tirou a noite do buraco outra vez, Titçatê ajuntou as florzinhas perto dele e veio com elas pra rede da minha última noite livre. Então mordi Titçatê."
Naipi, a narradora do incidente, mordeu o moço até arrancar sangue, mas ao contrários dos tuxauas, ele não desistiu e os dois brincaram. Depois de brincarem, fugiram da boiúna para o rio Zangado.
"No outro dia quando o pajé velho guardou a noite no buraco outra vez, Capei foi me buscar e encontrou a rede sangrando vazia. Deu um urro e deitou correndo em busca nossa. Vinha vindo vinha vindo, a gente escutava o urro dela perto, mais perto pertinho e afinal (pág. 38) as águas do rio Zengado empinaram com o corpo da boiúna ali."
Os dois não conseguiram fugir. Capei, a boiúna, fez o teste do ovo com Naipi e descobriu que não era mais virgem. De tanta raiva, quis acabar com o mundo. Transformou Naipi em uma pedra e Titçatê numa planta com flores roxas.
"Capei mora embaixo de mim, examinando sempre si fui mesmo brincada pelo moço. Fui sim e passarei chorando nesta pedra áté o fim do que não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro T'çatê...
Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma e ele soluçou tremido.
-Si... si... si a boiúna aparecesse eu... eu matava ela!
Então se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d'água. E Capei era a boiúna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de herísmo e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos. O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo, porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói. Ele aghachou distraído com a dor e o rabo passou por cime dele indo bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez juque! decepou a cabeça da bicha."
A cabeça começa a perseguir os três até que eles encontram uma casa.
"(...) Correndo correndo, légua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananéia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele:
- Como vai, bacharel?
- Menos mal, ignoto viajor.
- Tomando a fresca, não?
- C'est vrai, como dizem os franceses.
- Bem, té-logo bacharel, estou meio afobado..."
Fugindo ainda da boiúna, acabaram encontrando um rancho e lá dentro se fecharam. Mas Macunaíma descobre que na fuga perdeu seu amuleto, a muiraquitã. Nisso a cabeça chegou e bateu.
"- Que há?
- Abra a porta pra mim entrar!
Porém jacaré abriu? nem eles! e a cabeça não pôde entrar. Macunaíma não sabia que a cabeça ficara escrava dele e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito porém vendo que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse ser água os outros bebiam, si fosse mosquito flitavam, si fosse trem de ferro descarrilava, si fosse rio punham no mapa... Resolveu: 'Vou ser Lua'. Gritou:
- Abram a porta, gente, que quero umas coisas!
Macunaíma espiou pela fresta e avisou Jiguê já abrindo:
- Está solta!
Jiguê tornou a fechar a porta. Por isso que existe a expressão 'Tá solto!' indicando que a gente não faz mesmo o que nos pedem.
Bacharel de Cananéia deve ter sido pessoa conhecida, com quem MA parodia um discurso pernóstico e formal, tipo de discurso considerado na época discurso de bacharel, isto é, discurso de advogado. Porém jacará abriu? nem eles. Dito utilizado ainda nos dias atuais. Você fez tal coisa? Nem ele. De forma bem humorada, o autor finge que explica expressões de uso na época.
Desistindo de entrar no rancho, Capei pede auxílio a uma caranguejeira para subir pro céu.
"- Meu fio Sol derrete, secundou a aranha tatamanha.
Então a cabeça pediu pros xexéus se ajuntarem e ficou noite escura.
- Meu fio ninguém não enxerga de noite, disse a aranha tatamanha.
A cabeça foi buscar um cuité de friagem nos Andes e falou:
- Despeja uma gota cada légua e meia, fio branqueia de geada. Podemos ir.
- Pois então vamos.
(...)
Quando foi ali pela hora antes da madrugada a boiúna Capei chegou no céu. Estava gorducha de tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiúna mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu. Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de noite."
Mais um exemplo da ruptura do pensamento mágico com o pensamento cartesiano, na passagem em que a Capei vai aos Andes buscar o frio.
(CO0NTINUA)
Pág. 35 - "No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu."
A muiraquitã, uma rã de pedra verde translúcida, foi adotada como amuleto.
"Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado pelo séquito de araras vermelhas e jandaias. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci. 'Marvada!' que ele gemia... Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando cânticos de longa duração..."
O verbo gauderiar é regionalismo gaúcho e significa andar mais ou menos sem rumo.
"(Maanape) Catava os carrapatos do herói e o acalmava balançando o corpo. O herói acalmava acalmava e adormecia bem.
No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras vermelhas e jandaias.
Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver. Andaram légua e meia e encontraram uma cascata chorando sem parada. Macunaíma perguntou pra cascata:
- Que é isso!
- Chouriço!
- Conta o que é.
E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela."
Esta é uma lenda encontrada na Foz do Iguaçu, a lenda da boiúna Capei, uma cobra gigante.
A cascata então relata que era uma cunhã muito linda e todos os tuxauas (chefes) queriam dormir com ela, mas a dentadas e pontapés ela os espantava.
Pág. 37 - "Quando meu corpo chorou sangue pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço titçatê guerreiro de meu pai. a tristura talqualmente correição de sacassaia viera na taba e devorara até o silêncio.
Quando pajé velho tirou a noite do buraco outra vez, Titçatê ajuntou as florzinhas perto dele e veio com elas pra rede da minha última noite livre. Então mordi Titçatê."
Naipi, a narradora do incidente, mordeu o moço até arrancar sangue, mas ao contrários dos tuxauas, ele não desistiu e os dois brincaram. Depois de brincarem, fugiram da boiúna para o rio Zangado.
"No outro dia quando o pajé velho guardou a noite no buraco outra vez, Capei foi me buscar e encontrou a rede sangrando vazia. Deu um urro e deitou correndo em busca nossa. Vinha vindo vinha vindo, a gente escutava o urro dela perto, mais perto pertinho e afinal (pág. 38) as águas do rio Zengado empinaram com o corpo da boiúna ali."
Os dois não conseguiram fugir. Capei, a boiúna, fez o teste do ovo com Naipi e descobriu que não era mais virgem. De tanta raiva, quis acabar com o mundo. Transformou Naipi em uma pedra e Titçatê numa planta com flores roxas.
"Capei mora embaixo de mim, examinando sempre si fui mesmo brincada pelo moço. Fui sim e passarei chorando nesta pedra áté o fim do que não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro T'çatê...
Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma e ele soluçou tremido.
-Si... si... si a boiúna aparecesse eu... eu matava ela!
Então se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d'água. E Capei era a boiúna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de herísmo e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos. O monstro atirou uma guascada tirlintando com os guizos do rabo, porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói. Ele aghachou distraído com a dor e o rabo passou por cime dele indo bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez juque! decepou a cabeça da bicha."
A cabeça começa a perseguir os três até que eles encontram uma casa.
"(...) Correndo correndo, légua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananéia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele:
- Como vai, bacharel?
- Menos mal, ignoto viajor.
- Tomando a fresca, não?
- C'est vrai, como dizem os franceses.
- Bem, té-logo bacharel, estou meio afobado..."
Fugindo ainda da boiúna, acabaram encontrando um rancho e lá dentro se fecharam. Mas Macunaíma descobre que na fuga perdeu seu amuleto, a muiraquitã. Nisso a cabeça chegou e bateu.
"- Que há?
- Abra a porta pra mim entrar!
Porém jacaré abriu? nem eles! e a cabeça não pôde entrar. Macunaíma não sabia que a cabeça ficara escrava dele e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito porém vendo que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse ser água os outros bebiam, si fosse mosquito flitavam, si fosse trem de ferro descarrilava, si fosse rio punham no mapa... Resolveu: 'Vou ser Lua'. Gritou:
- Abram a porta, gente, que quero umas coisas!
Macunaíma espiou pela fresta e avisou Jiguê já abrindo:
- Está solta!
Jiguê tornou a fechar a porta. Por isso que existe a expressão 'Tá solto!' indicando que a gente não faz mesmo o que nos pedem.
Bacharel de Cananéia deve ter sido pessoa conhecida, com quem MA parodia um discurso pernóstico e formal, tipo de discurso considerado na época discurso de bacharel, isto é, discurso de advogado. Porém jacará abriu? nem eles. Dito utilizado ainda nos dias atuais. Você fez tal coisa? Nem ele. De forma bem humorada, o autor finge que explica expressões de uso na época.
Desistindo de entrar no rancho, Capei pede auxílio a uma caranguejeira para subir pro céu.
"- Meu fio Sol derrete, secundou a aranha tatamanha.
Então a cabeça pediu pros xexéus se ajuntarem e ficou noite escura.
- Meu fio ninguém não enxerga de noite, disse a aranha tatamanha.
A cabeça foi buscar um cuité de friagem nos Andes e falou:
- Despeja uma gota cada légua e meia, fio branqueia de geada. Podemos ir.
- Pois então vamos.
(...)
Quando foi ali pela hora antes da madrugada a boiúna Capei chegou no céu. Estava gorducha de tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiúna mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu. Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de noite."
Mais um exemplo da ruptura do pensamento mágico com o pensamento cartesiano, na passagem em que a Capei vai aos Andes buscar o frio.
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