O Casarão da Rua do Rosário, de Menalton
Braff, pela Bertrand Brasil, 2012, 344 páginas
Publicado; 03/11/2012 | Autor: Valdemir Pires | Filed under: 04. mouse de biblioteca (resenhas curtas)
Em O Casarão da Rua do Rosário, as inexoráveis marcas do tempo sobre as coisas,
sobre as pessoas e sobre os relacionamento são pintadas por Menalton
Braff com cores de tristeza, mas com
nuances que fogem ao sombrio, marcando a memória com sabores de vitória sobre
as adversidades — embora sejam, com frequência, percebidas, a posteriori,
como vitórias de Pirro.
A ânsia de viver, que encontra acolhida para além do portão pesado do casarão controlado pelas tias solteironas e carolas (Benvinda, a terrível; Amélia, Ivone e Joana, as submissas), é contida, freada, cerceada pelas paredes carregadas de falsa tradição e poder do imóvel decadente, ameaçado pelos edifícios de um novo tempo.
A ânsia de viver, que encontra acolhida para além do portão pesado do casarão controlado pelas tias solteironas e carolas (Benvinda, a terrível; Amélia, Ivone e Joana, as submissas), é contida, freada, cerceada pelas paredes carregadas de falsa tradição e poder do imóvel decadente, ameaçado pelos edifícios de um novo tempo.
Palmiro, o personagem-narrador, vive, como se fosse
de favor (direitos de herança ignorados), juntamente com a mãe (Isaura, a
caçula rebelde dos Gouveia de Guimarães) e as irmãs mais novas (Dolores e
Irene), no casarão dominado pelas tias, com apoio do irmão Romão (um alto cargo
na prefeitura, que administra as finanças combalidas da família), por força de
uma circunstância terrível: o sumiço do marido e pai, o mecânico Bernardo,
preso pelos agentes da ditadura militar por causa de sua militância sindical.
Um depósito de rancores, o casarão abriga também,
Ataulfo, o tio “lelé da cuca”, alienado e feliz com seus animais e plantas,
amigo das crianças, tiranizado pelas tias velhas, que o tomam por um não-ser,
arriscado de “ter parte com o demo” e, portanto, estigmatizado e isolado da
convivência normal da casa, tão religiosamente regida. Ataulfo, um símbolo da
inocência e da inoperância, no meio de um mundo novo se anunciando sobre os
escombros da caducidade crescente de outro, retido na memória e em práticas
mantidas por força de tradições e interesses dilacerantes para os discordantes.
Aparecem por ali, vez por outra, os primos, com destaque para Rodolfo — futuro
cunhado indesejado de Palmiro e político bem-sucedido, do lado oposto ao dele,
acriticamente alinhado ao pai –, o favorito de Benvinda e devorador exclusivo
dos figos reluzentes em calda tantas vezes negados a Palmiro, Dolores e Irene,
os abrigados a contragosto, filhos do “baderneiro” Bernardo e da indócil e
indomável Isaura, convidados ao “não quero” quando a guloseima é servida.
O lado libertário dos moradores do casarão (o
núcleo Isaura, Palmiro, Dolores e Irene) sofre demais para sobreviver e se
auto-afirmar diante das adversidades da vida e da pressão e falta de
solidariedade do tio e tias (o lado reacionário), enfrentando cada dia como se
fosse uma batalha, de uma guerra não só familiar, mas também política, como se
a família estivesse cindida a partir de fora – o contexto da luta contra a
ditadura. Angústia. Sem ter como resposta o desalento: a vida tem que
continuar, a felicidade não pode ser como a sente Ataulfo, para quem a única
tristeza é a ausência dos inocentes, que deixam de sê-lo (ao se tornarem adultos)
ou deixam de ser (ou morrendo, como o papagaio, o gato e o cachorro tão
estimados).
O casarão da Rua do Rosário sobrevive aos seus
antigos residentes como um esqueleto, desprovido de vida e encantos, fadado ao
desaparecimento, engolido pelos edifícios modernos e funcionais,
plurifamiliares; e os sobreviventes ao casarão vão aos poucos se rearranjando,
em novas vidas e núcleos familiares, sem, entretanto, conseguir isolá-lo de
seus novos modos de ser e de ver a vida, posto que, quando ativo, lançou sobre
eles uma maldição que não desgruda da memória.
É curioso o efeito do recurso da repetição de
passagens inteiras utilizado por Menalton Braff (já presente, com menor
intensidade, em Tapete de Silêncio): percebe-se que o que está sendo
lido o foi anteriormente; mas, no novo contexto, ocorre um reforço de aspectos
da sensação/percepção que o autor, aparentemente, deseja passar ao leitor.
O Casarão da Rua do Rosário não deve passar despercebido como um esforço
literário na busca da compreensão e superação de tempos politicamene sombrios
na América Latina, reduzindo a distância, nesse esforço, entre autores
brasileiros, de um lado, e argentinos e chilenos, de outro, estes mais
dedicados aos temas e impactos das respectivas ditaduras militares sobre a vida
das pessoas, protagonistas (de um lado ou de outro) ou não. Algo alvissareiro
nestes tempos de Comissão Nacional da Verdade.
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