O conto abaixo foi publicado no livro A COLEIRA NO PESCOÇO, editado pela Bertrand Brasil.
Sem saber ao certo o que sentir, na seqüência, depois de abrir a janela e debruçar-se no parapeito, toda aquela paisagem cabendo em seus dois olhos miúdos, a mãe lambeu com insistência os próprios lábios, que durante a noite haviam ressecado. Não tinham chegado a rachar, coisa que só acontecia no inverno mais frio, quando muitas vezes chegava a passar fome. Mas soube com a ponta da língua que tinham estado secos. Olhou novamente as duas manchas redondas e suas narinas se dilataram felizes.
Aquele primeiro dia,
quase noite
O filho não acordou em janeiro de manhã, agora, quando o calor torna-se mais intenso. E
o modo roxo como apertava os lábios um contra o outro podia não significar
coisa alguma, mas a mãe acertadamente interpretou como sendo a recusa. A
despeito de muda, e inexplicável, uma recusa. E exatamente de sua túmida teta
materna. Paciente e concentrada recolheu o seio para o interior de seus trapos
e sem cansaço foi abrir a janela, como se estivesse acabando de criar o mundo.
O sol entrou circular, reparando, mas era um signo exageradamente genérico para
que ela chegasse a qualquer conclusão sensata. Debruçou-se no parapeito, para
cumprir o rito, talvez até um pouco avidamente, atraída pela claridade da
paisagem ainda úmida do útero noturno, e sentiu a vazão do próprio leite que o
peso do corpo começava a ofertar. Uma vazão lenta e silenciosa como uma urina:
o prazer do alívio. Então seus olhos maravilhados mediram aquelas duas manchas
redondas no alto de seu peito: a alegria.
Sem saber ao certo o que sentir, na seqüência, depois de abrir a janela e debruçar-se no parapeito, toda aquela paisagem cabendo em seus dois olhos miúdos, a mãe lambeu com insistência os próprios lábios, que durante a noite haviam ressecado. Não tinham chegado a rachar, coisa que só acontecia no inverno mais frio, quando muitas vezes chegava a passar fome. Mas soube com a ponta da língua que tinham estado secos. Olhou novamente as duas manchas redondas e suas narinas se dilataram felizes.
Foi-se chegando sorrateira, devagar sediciosa, a entrar sem ser
notada, até que lá dentro, de uma só feita, o volume vazio da fome. E então a
mãe soube no instante que estava com bastante fome. Um saber do corpo só,
corporal, que a mente pendia para um sentir mais obtuso: seu organismo.
No alto da paisagem azul e
verde, bem no alto, acima, já lá na banda azul, a mulher viu um gavião de bico
recurvo e olhos rapinosos tremulando as asas. Um gavião parado
suspenso no ar azul. Ela viu de gosto, com gozo. A extensão de sua visão, cá
embaixo. De repente ele estridulou seu grito guerreiro antecipando a vitória –
o viver diário - e a mãe afastou-se em
susto da janela, o coração batendo aos pulos fortes, e, com o corpo curvo
arqueado, sacudia a cabeça, as pálpebras coladas sobre os olhos. Sacudia a
cabeça e sacudia como se tivesse esquecido alguma coisa. E girava o corpo
rodando como se tentasse fugir. E sacudia ainda mais, sem conseguir lembrar-se.
Uma coisa importante, talvez, talvez desagradável.
Sentou-se apressada no
catre, aquela impressão de um peso pesando ainda por sobre, seus olhos de
sombra parados tentando pensar. Sentou-se com o peso ao lado do filho, olhando
a loucura do mundo transformado em carrossel. Mas foi só um instante: o
necessário.
Muito mulher, a mulher, como sempre em todos seus dias, desde que
ali viera abrigar-se, trazida, levantou-se e pegou a sacola para buscar a
comida nas casas, mas voltou a sentar-se por causa daquele seu filho
que parecia não querer acordar nunca mais. Ao olhar para o pedaço iluminado de
estrada por onde deveria sair com a sacola presa na mão, um pedaço de estrada
que vinha rastejante até ali a porta, tudo voltou a ser o primeiro dia, quase
noite, aquele primeiro dia, fugindo para a frente, o mundo todo, desde sempre e
de longe, o medo, as árvores, os pássaros. E o fogo da fome roendo suas
entranhas.
As paredes de taipa não
tinham como evitar os riscos de sol: o entrevero de lanças. Em sua defesa,
naquele primeiro dia, mãos e pés, os machucados, entre susto e espanto, as
pausas, cansaço e espasmos, além de unhas e dentes, as marcas deixadas na pele
de homem de um homem. O entrevero. Seus gritos ricocheteavam nas nuvens, mas
seres humanos moravam longe de mais. Sua dor.
Então seus olhos pararam
parados num ponto de luz com os brilhos, o balaio dependurado no espaço,
sustido no gancho, na altura, em ponta de arame, onde o esforço maior dos ratos
não pudesse prejudicar. Suas mãos um pouco também se aquietaram: aquilo uma
expectativa, um acontecimento prestes a existir. Primeiro a mãe fungou um ronco
desconfiado e depois levantou-se com pouca pressa, os passos por dar, para
finalmente descobrir dentro do balaio apenas um pedaço de pão seco de tão
esquecido.
Assim, ela ficou sentada,
roendo o pão, cheia de um medo que porejava um suor fino em seu rosto. Medo de
que o primeiro dia fosse agora, outro dia – o gavião e seu grito
acima das nuvens - e ela tivesse de
voltar para a estrada, em fuga, o sangue descendo-lhe pelas coxas, secando em
suas pernas apressadas, enquanto a semente de um filho começava a germinar. O
sol continuava entrando por todos os furos da casa: o entrevero.
O filho imóvel, enfim, era
uma proibição, e a mãe não teve mais vontade de pôr-se a caminho. Com olhos um
pouco murchos contemplou o filho, o que tinha carregado no ventre todas as
vezes em que saía pela estrada para buscar comida nas casas: o peso. Foi ajeitando
o corpo, enrodilhando-se em arco, o aconchego, até deitar-se a seu lado para
oferecer-lhe a teta túmida, quem sabe, ou para dormirem juntos.
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