sexta-feira, 29 de março de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue está na coletânea A coleira no pescoço, editado em 2006 pela Editora Bertrand Brasil.

A cerca

Joaquim Boaventura, ou simplesmente Boaventura, como julgava chamar-se, era um funcionário de grande dignidade na visão dos vizinhos. Era respeitado como as coisas que sempre existiram e cuja origem é um mistério. Quando começaram a surgir as casas nos arredores da cerca, Boaventura já estava lá do lado de dentro, sentado em seu banquinho de três pernas, muito sério, tomando conta do terreno sem nunca se distrair. Sentado à sombra, no verão; sentado ao sol, nos dias frios do inverno.


Um dia o homem do terreno, como seria sempre lembrado pelo funcionário, tocou a campainha de sua casa e ele veio atender fechando a braguilha e apertando a cinta porque estava cochilando na sala. Era um fim de tarde e Boaventura estava descansando de tanto procurar emprego pela cidade. O homem perguntou Você quer um emprego?, e ele sorriu pesado, pensando que fosse uma brincadeira, pois tinha passado o dia oferecendo-se para trabalhar e não era razoável esperar que o emprego viesse até ele assim tão facilmente.

Depois de alguma relutância, o homem do terreno aceitou o convite, cerimonioso, por isso entrou pisando só com a ponta dos pés e sem reparar na desordem, conforme lhe solicitara Boaventura. Repetiu, então a pergunta, e o fez com uma seriedade tão grave na voz que Boaventura não teve outro jeito senão dizer que sim, isto é, depende. Depois de saber de todas as condições de trabalho, finalmente, ele disse que aceitava e perguntou Então, quando é que eu posso começar? Havia alguma ansiedade em sua pergunta, que o homem percebeu, sem usar de malícia, entretanto. Apontou com o dedo para uma pequena cruz no início de uma linha do formulário e disse a Boaventura que assinasse aqui, ó. Mal ele terminou de assinar, o homem apertou-lhe a mão, dizendo Parabéns, você acaba de começar.

Era quase noite quando chegaram ao terreno. O portão, um quadrilátero de tela emoldurada por tubos de ferro, estava fechado. Boaventura recebeu as instruções iniciais e a chave. Sentiu-se muito emocionado, pois era sua primeira vez. Tão emocionado que não atinava com a posição correta em que a chave deveria entrar na fenda do cadeado. Finalmente, um pouco antes do pânico, o portão se deixou abrir, submisso. Os dois entraram no terreno pisando firme: o homem na frente, singrando a paisagem com sua estatura, e Boaventura atrás, em formação de marcha.

Poucos meses depois de empregado, o novo funcionário já estabelecera sua rotina para cumprimento das instruções. Acordava bem cedo e, antes de sair da cama, ainda deitado, agradecia a Deus por lhe haver concedido a luz de mais um dia. Não fazia parte das instruções, aquilo, mas fora educado assim e ele não era do tipo de sentir prazer na ruptura das tradições. Em cinco minutos dedicava-se ao corpo, sua higiene, enquanto o café esquentava sobre o fogareiro. O pão era dormido, mas Boaventura não se importava, pensando que muitas pessoas nem isso têm. Só depois de alimentado, abria a porta da casinha para fazer sua primeira ronda diária. Percorria, então, toda a extensão da cerca, examinando-a atentamente, conferindo cada detalhe.

O terreno ficava, no início, quando Boaventura foi contratado, em um arrabalde distante, depois de um bosque de acácias que escondiam a cidade. Nos últimos tempos, contudo, a cidade veio crescendo, engolindo bosques e chácaras, até envolver o terreno fazendo dele uma ilha. Boaventura assistiu à chegada dos vizinhos sem alterar nada de sua rotina, além da atenção maior que botava no exame diário da cerca. Eram cento e vinte metros beirando agora uma calçada, no lado mais extenso, e sessenta metros de fundo. O terreno era plano e coberto de capim, com algumas falhas, principalmente no inverno. Perto do portão ficava a casinha do guarda e no lado oposto havia uma carroça. Mais nada. Era um terreno vazio.

  A carroça dava a impressão de estar sempre parada, no mesmo lugar e na mesma posição. Mas isso era apenas uma ilusão, pois nada pode ser imóvel se existe no tempo. O novo guarda estava incumbido de conservá-la o melhor que pudesse, por essa razão, uma vez por semana, geralmente às sextas-feiras, Boaventura examinava a carroça durante uma boa parte da tarde. Besuntava de graxa as quatro pontas de eixo, repregava alguma tábua que estivesse empenando, limpava tudo e se afastava um pouco para admirar sua obra. Com o passar dos anos foi que Boaventura finalmente percebeu quão enganosa é a imobilidade. De um inverno para outro, mesmo trabalhando em sua conservação uma vez por semana, descobria diferenças inelutáveis: a carroça se deteriorava. Por fim, depois que raios e cambotas já não existiam mais e o aro, enferrujado, nada mais prendia, o guarda desistiu de continuar tentando mantê-la viva. A madeira se desmanchava até mesmo sob as rajadas mais fortes do vento. Era um esqueleto que aos poucos se enterrava, sumia, um montículo de pedaços do que fora uma carroça. Já fazia alguns anos que Boaventura não se ocupava mais dela.

Depois de sua excursão matinal, quando examinava a cerca, o guarda invariavelmente sentava-se ao lado da casa. À sombra, se fosse verão, e ao sol, quando chegava o inverno. Era ali que ficava toda manhã, recebendo os cumprimentos dos vizinhos que passavam e respondendo-lhes com muita circunspecção. Enfim, de certo modo ele era uma autoridade. Faltando cinco minutos para o meio-dia, chegava sua marmita, que algum empregado da pensão lhe trazia. Era uma folga que fazia parte das normas que lhe havia passado o homem do terreno, epíteto com que se referia ao seu contratante. O homem do terreno.

Nunca mais tivera notícias do homem do terreno. Nem dele nem de ninguém mais. Todos os meses o salário lhe era depositado no banco, durante os muitos anos em que vinha prestando serviços para o mesmo empregador. Às vezes, mente ociosa, pensava em perguntar quem lhe fazia tais depósitos e por quê. Mas não perguntava. Primeiro porque não tinha para quem perguntar; depois, não tinha certeza se qualquer pergunta desse tipo contrariava ou não as normas. Era melhor, portanto, conservar-se em silêncio. 

Um dia, no fim do expediente, Boaventura olhou-se no espelho porque não se lembrava mais de suas feições. E não se reconheceu. Havia uns sulcos desconhecidos que lhe marcavam a testa e as faces, os olhos tinham-se tornado opacos como lâmpadas apagadas e o cabelo estava descolorido, esbranquiçado. Lembrou-se então da carroça, mas sem propósito nenhum de comparação. E era uma lembrança tão incômoda quão renitente. Quase não dormiu, naquela noite, pensando que não conseguira manter a integridade da carroça, como era de sua incumbência. Algumas semanas mais tarde, já estava acostumado com a própria aparência e com o aspecto do que restara da carroça.

Mesmo dispondo de quase todo o tempo para poder pensar, o guarda não pensava mais porque não tinha em que pensar. Nos primeiros tempos, ainda se lembrava da família e de alguns amigos. Mas era uma época em que se esmerava na aprendizagem das normas e procedimentos, sua rotina, por isso evitava pensamentos que não o ajudassem. Quando todas as tarefas diárias passaram a ser executadas por hábito apenas, sem ocupação da mente com elas, as lembranças haviam adormecido em regiões que Boaventura não estava acostumado a explorar. Por isso, sentava-se ao lado da casa, à sombra, se era verão, e debaixo do sol, durante o inverno, e abandonava-se à única distração que se permitia e que lhe dava um pequeno prazer: ficava olhando para a rua e respondendo aos cumprimentos dos que passavam. Assim ficava o guarda até a chegada do almoço, quando se encaminhava ao portão, para recebê-lo; e a tarde inteira, esperando anoitecer.

Ontem, ao gritar no portão, o garoto que lhe trazia a marmita não obteve resposta. Apesar de meio-dia, o sol estava macio, amarelado, e ele pôde esperar algum tempo. Gritou novamente e o resultado foi o mesmo. Talvez o guarda tivesse saído, fora de seus hábitos, para ir ao banco  - alguma necessidade imprevista. Então voltou com a marmita para a pensão. À noite, tremendo de frio e medo, contribuiu com sua história para os comentários que se faziam no bar mais próximo do terreno: durante o dia todo ninguém vira Boaventura, o guarda. 

Como Boaventura não fosse visto hoje de manhã, com seu grosso casacão, fazendo sua ronda ao redor do terreno, os vizinhos se reuniram e resolveram chamar a polícia.

                                                                  *          

                                                                             

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