O conto que segue está na coletânea A coleira no pescoço, editado em 2006 pela Editora Bertrand Brasil.
A cerca
A cerca
Joaquim Boaventura, ou simplesmente Boaventura, como julgava chamar-se,
era um funcionário de grande dignidade na visão dos vizinhos. Era respeitado
como as coisas que sempre existiram e cuja origem é um mistério. Quando
começaram a surgir as casas nos arredores da cerca, Boaventura já estava lá do
lado de dentro, sentado em seu banquinho de três pernas, muito sério, tomando
conta do terreno sem nunca se distrair. Sentado à sombra, no verão; sentado ao
sol, nos dias frios do inverno.
Um dia o homem do terreno, como seria sempre lembrado pelo funcionário,
tocou a campainha de sua casa e ele veio atender fechando a braguilha e
apertando a cinta porque estava cochilando na sala. Era um fim de tarde e
Boaventura estava descansando de tanto procurar emprego pela cidade. O homem
perguntou Você quer um emprego?, e ele sorriu pesado, pensando que fosse uma
brincadeira, pois tinha passado o dia oferecendo-se para trabalhar e não era
razoável esperar que o emprego viesse até ele assim tão facilmente.
Depois de alguma relutância, o homem do terreno aceitou o convite,
cerimonioso, por isso entrou pisando só com a ponta dos pés e sem reparar na
desordem, conforme lhe solicitara Boaventura. Repetiu, então a pergunta, e o
fez com uma seriedade tão grave na voz que Boaventura não teve outro jeito
senão dizer que sim, isto é, depende. Depois de saber de todas as condições de
trabalho, finalmente, ele disse que aceitava e perguntou Então, quando é que eu
posso começar? Havia alguma ansiedade em sua pergunta, que o homem percebeu,
sem usar de malícia, entretanto. Apontou com o dedo para uma pequena cruz no
início de uma linha do formulário e disse a Boaventura que assinasse aqui, ó.
Mal ele terminou de assinar, o homem apertou-lhe a mão, dizendo Parabéns, você
acaba de começar.
Era quase noite quando chegaram ao terreno. O portão, um quadrilátero de
tela emoldurada por tubos de ferro, estava fechado. Boaventura recebeu as
instruções iniciais e a chave. Sentiu-se muito emocionado, pois era sua
primeira vez. Tão emocionado que não atinava com a posição correta em que a
chave deveria entrar na fenda do cadeado. Finalmente, um pouco antes do pânico,
o portão se deixou abrir, submisso. Os dois entraram no terreno pisando firme:
o homem na frente, singrando a paisagem com sua estatura, e Boaventura atrás,
em formação de marcha.
Poucos meses depois de empregado, o novo funcionário já estabelecera sua
rotina para cumprimento das instruções. Acordava bem cedo e, antes de sair da
cama, ainda deitado, agradecia a Deus por lhe haver concedido a luz de mais um
dia. Não fazia parte das instruções, aquilo, mas fora educado assim e ele não
era do tipo de sentir prazer na ruptura das tradições. Em cinco minutos
dedicava-se ao corpo, sua higiene, enquanto o café esquentava sobre o
fogareiro. O pão era dormido, mas Boaventura não se importava, pensando que
muitas pessoas nem isso têm. Só depois de alimentado, abria a porta da casinha
para fazer sua primeira ronda diária. Percorria, então, toda a extensão da
cerca, examinando-a atentamente, conferindo cada detalhe.
O terreno ficava, no início, quando Boaventura foi contratado, em um
arrabalde distante, depois de um bosque de acácias que escondiam a cidade. Nos
últimos tempos, contudo, a cidade veio crescendo, engolindo bosques e chácaras,
até envolver o terreno fazendo dele uma ilha. Boaventura assistiu à chegada dos
vizinhos sem alterar nada de sua rotina, além da atenção maior que botava no
exame diário da cerca. Eram cento e vinte metros beirando agora uma calçada, no
lado mais extenso, e sessenta metros de fundo. O terreno era plano e coberto de
capim, com algumas falhas, principalmente no inverno. Perto do portão ficava a
casinha do guarda e no lado oposto havia uma carroça. Mais nada. Era um terreno
vazio.
A carroça dava a impressão de
estar sempre parada, no mesmo lugar e na mesma posição. Mas isso era apenas uma
ilusão, pois nada pode ser imóvel se existe no tempo. O novo guarda estava
incumbido de conservá-la o melhor que pudesse, por essa razão, uma vez por
semana, geralmente às sextas-feiras, Boaventura examinava a carroça durante uma
boa parte da tarde. Besuntava de graxa as quatro pontas de eixo, repregava
alguma tábua que estivesse empenando, limpava tudo e se afastava um pouco para
admirar sua obra. Com o passar dos anos foi que Boaventura finalmente percebeu
quão enganosa é a imobilidade. De um inverno para outro, mesmo trabalhando em
sua conservação uma vez por semana, descobria diferenças inelutáveis: a carroça
se deteriorava. Por fim, depois que raios e cambotas já não existiam mais e o
aro, enferrujado, nada mais prendia, o guarda desistiu de continuar tentando
mantê-la viva. A madeira se desmanchava até mesmo sob as rajadas mais fortes do
vento. Era um esqueleto que aos poucos se enterrava, sumia, um montículo de
pedaços do que fora uma carroça. Já fazia alguns anos que Boaventura não se
ocupava mais dela.
Depois de sua excursão matinal, quando examinava a cerca, o guarda
invariavelmente sentava-se ao lado da casa. À sombra, se fosse verão, e ao sol,
quando chegava o inverno. Era ali que ficava toda manhã, recebendo os
cumprimentos dos vizinhos que passavam e respondendo-lhes com muita
circunspecção. Enfim, de certo modo ele era uma autoridade. Faltando cinco
minutos para o meio-dia, chegava sua marmita, que algum empregado da pensão lhe
trazia. Era uma folga que fazia parte das normas que lhe havia passado o homem
do terreno, epíteto com que se referia ao seu contratante. O homem do terreno.
Nunca mais tivera notícias do homem do terreno. Nem dele nem de ninguém
mais. Todos os meses o salário lhe era depositado no banco, durante os muitos
anos em que vinha prestando serviços para o mesmo empregador. Às vezes, mente
ociosa, pensava em perguntar quem lhe fazia tais depósitos e por quê. Mas não
perguntava. Primeiro porque não tinha para quem perguntar; depois, não tinha
certeza se qualquer pergunta desse tipo contrariava ou não as normas. Era melhor,
portanto, conservar-se em silêncio.
Um dia, no fim do expediente, Boaventura olhou-se no espelho porque não
se lembrava mais de suas feições. E não se reconheceu. Havia uns sulcos
desconhecidos que lhe marcavam a testa e as faces, os olhos tinham-se tornado
opacos como lâmpadas apagadas e o cabelo estava descolorido, esbranquiçado.
Lembrou-se então da carroça, mas sem propósito nenhum de comparação. E era uma
lembrança tão incômoda quão renitente. Quase não dormiu, naquela noite,
pensando que não conseguira manter a integridade da carroça, como era de sua
incumbência. Algumas semanas mais tarde, já estava acostumado com a própria
aparência e com o aspecto do que restara da carroça.
Mesmo dispondo de quase todo o tempo para poder pensar, o guarda não
pensava mais porque não tinha em que pensar. Nos primeiros tempos, ainda se
lembrava da família e de alguns amigos. Mas era uma época em que se esmerava na
aprendizagem das normas e procedimentos, sua rotina, por isso evitava
pensamentos que não o ajudassem. Quando todas as tarefas diárias passaram a ser
executadas por hábito apenas, sem ocupação da mente com elas, as lembranças
haviam adormecido em regiões que Boaventura não estava acostumado a explorar.
Por isso, sentava-se ao lado da casa, à sombra, se era verão, e debaixo do sol,
durante o inverno, e abandonava-se à única distração que se permitia e que lhe
dava um pequeno prazer: ficava olhando para a rua e respondendo aos
cumprimentos dos que passavam. Assim ficava o guarda até a chegada do almoço,
quando se encaminhava ao portão, para recebê-lo; e a tarde inteira, esperando
anoitecer.
Ontem, ao gritar no portão, o garoto que lhe trazia a marmita não obteve
resposta. Apesar de meio-dia, o sol estava macio, amarelado, e ele pôde esperar
algum tempo. Gritou novamente e o resultado foi o mesmo. Talvez o guarda
tivesse saído, fora de seus hábitos, para ir ao banco - alguma necessidade imprevista. Então voltou com a
marmita para a pensão. À noite, tremendo de frio e medo, contribuiu com sua
história para os comentários que se faziam no bar mais próximo do terreno:
durante o dia todo ninguém vira Boaventura, o guarda.
Como Boaventura não fosse visto hoje de manhã, com seu grosso casacão,
fazendo sua ronda ao redor do terreno, os vizinhos se reuniram e resolveram
chamar a polícia.
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