sexta-feira, 8 de março de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue está na coletânea À sombra do cipreste, cuja 6ª edição saiu pela Global no ano de 2012.
Adeus, meu pai

 Portas e janelas mantêm-se fechadas desde o início da noite: o frio lá fora, rondando a casa, silencioso, enquanto na sala enfumaçada de vez em quando alguém abafa a tosse com a mão, pede um copo dágua, tenta espantar o sono. A mulher que até agora vem puxando o terço abre um pouco a janela da frente, respira a noite - sua cabeça escondida atrás da veneziana: não suporta mais o cheiro adocicado e murcho das flores, ela esclarece assim que retorna.

Soltas no regaço, em repouso, as mãos de Ana, ásperas e rugosas, desde a véspera  irremediavelmente inúteis, não se movem. Há muito elas já vinham assumindo esta coloração baça de gesso, de maneira imperceptível porém progressiva, até que, esta madrugada, ao fitá-las através da fumaça, seus olhos sujos de pasmo e sono, ela diz para si mesma pois é, e eu continuo aqui, livre e sem razão. E suspira. Apreensiva. Mas, apesar do desconforto de ter a casa devassada por tantos olhos, com os vizinhos vasculhando seus cantos escondidos, ditando as providências, mudando lugares e horários, é um momento em que não gostaria de estar sozinha. E não está.
 Pouco antes, um daqueles intrusos encostou-lhe delicadamente o assento de uma cadeira nas curvas das pernas, senta, criatura de Deus, porque ninguém pode ficar assim, de pé parada,  a noite toda. E ela sentou-se em silêncio, apalermada, o busto um pouco erguido demais para quem velava desde a tarde anterior -  o modo como pensava assumir a chefia da casa -  mas sem  muita consciência do ritual que se cumpre em torno daquelas quatro velas que pouco iluminam e mesmo assim se consomem irremediavelmente nos castiçais.
O ar espesso da sala enfumaçada torna-se mais denso ainda com o sopro quente daquele cochicho: seus olhos enxutos. A noite toda assim: enxutos. A vizinha da frente tenta arrancar de Ana qualquer sinal de sofrimento, inconformada com tamanha serenidade, e, como não consegue, abre com estrépito a janela por onde entra uma golfada de ar gelado e o movimento nascente do bairro.  Aquilo, seu gesto brusco, parece a muitos  um desrecalque, alguma vindita, forma de jogar o velho, mais entrevado do que nunca, no meio da rua. Alguns chegam a trocar olhares significativos; nada mais que isso, entretanto. Ana apenas suspira, mais por cansaço que de dor, ao ver despejar-se tanto sol sobre o esquife do pai: seus olhos cerrados. Enxutos. Mais do que ninguém, naquela sala, ela tem razões para a tristeza, todos sabem, mas quando seca o coração e há flores murchas nos vasos ao redor da mesa, os olhos não vertem mais lágrimas. O coração de Ana, ainda jovem ela o espanejara, espremera-o bem, e o trancara por fora, protegido. Quem sabe para sempre. A vida dele em suas mãos, minha filha - sua mãe no quarto do hospital. Em suas mãos.
Lágrima nenhuma, cochicham os homens na cozinha, quase alegres com o escândalo que é a falta de sentimento daquela filha. Nenhuma, repete ainda um dos mais velhos, cigarro pendurado em um dos cantos da boca, cismarento, olhar perdido na superfície agitada da cafeteira, de onde retira a colher pingando e onde a espuma, aos poucos, se desmancha. Também, pudera, recomeça depois de encher as xícaras, e, percebendo que vários de seus companheiros se voltam para ele, curiosos, decide silenciar: boatos antigos, apenas, o ódio pelo pai e aquela paixão devastadora. Boataria. E, enquanto coloca xícaras vazias em uma bandeja (o café das mulheres que rezam o terço na sala), sacode a cabeça repetindo: tudo boato, claro. Maldade do povo desta rua.
A não ser pela ladainha intermitente das mulheres na sala e pelo espocar de uma que outra gargalhada depois de uma anedota na cozinha, a madrugada avança lenta e silenciosamente para a maioria dos participantes da vigília - os que afundam as mãos na geladeira, servem-se com desenvoltura do fogão, enchem os cinzeiros de tocos de cigarros e os esvaziam  no cesto de lixo. Outros, derrotados pelo cansaço, ressonam jogados sobre a mesa, a cabeça apoiada nos braços. Vez por outra um deles levanta a cabeça, o cabelo empastado na testa, os olhos injetados, para perguntar se já está na hora.
E então, ele veio?, perguntam ao velho, mal aparece de volta na porta da cozinha. A expectativa de que o passado encontre sua outra ponta nesta noite longa e fria já vai esmorecendo porque o dia começa a entrar pelas frinchas das venezianas e pelas frestas por debaixo das portas. Talvez não venha mais, respondem seus braços abertos e suas mãos espalmadas.
Instigado pelo barulho repentino e pelo cheiro marrom do café, um dos amigos da casa consulta o relógio e avisa: a hora chegando. Ninguém lhe contesta o direito de determinar a seqüência das ações naquela casa e naquelas circunstâncias. Há mais de trinta anos, desde que o entrevado e a filha vieram morar nesta água-furtada de fim de rua,  ele e João Pedro, seu primo, eram as únicas pessoas a freqüentar a casa quase todos os fins de tarde, por conta daquelas infindáveis partidas de xadrez que mantinham o velho aceso e combatente. Durante  duas décadas ou mais os moradores da rua maliciaram suas visitas, sugerindo entre risos que um dos dois ainda sairia casado com Ana. Ou os dois. E isso os deliciava muito, pois não conseguiam imaginar o que seria feito do velho, então. Por fim, sem resultados aparentes, desistiram de inventar o futuro e esqueceram-se de Ana em sua prisão: a vida dele em suas mãos, minha filha. Mas o povo não estava inteiramente errado. João Pedro, o mais novo dos dois primos, durante muito tempo  não fez questão de ganhar ou perder aquelas batalhas intermináveis, em que peões e bispos, brancos ou pretos, eram abandonados à própria sorte, enquanto seus olhos sequiosos bebiam gota a gota cada gesto de Ana, mergulhavam nas curvas da moça enquanto seus braços fortes e roliços empurravam a cadeira do pai.  Ela não tinha ainda estes olhos fundos tão tristes e medrosos nem sua pele era pálida como agora. Seu rosto não era assim chupado, de maçãs salientes, nem seus cabelos tinham sido ainda tingidos pelas mãos do tempo. No dia em que ele criou coragem e declarou seu amor, sem nada responder a jovem sumiu para os fundos da casa desmanchando-se em prantos. Em suas mãos, minha filha. Em suas mãos.
O jovem entendeu a recusa de Ana e seu silêncio,  jurando com a maior seriedade nunca mais voltar ao assunto sem que a moça  estivesse desimpedida de seu penoso encargo.
Com o olhar embrutecido pelo sono, Ana  observa o antigo companheiro de seu pai, enquanto ele pega a tampa do esquife, até então de pé e encostada à parede, para fechar o caixão. Nos quatro castiçais de alumínio, pequenos tocos de vela irremediavelmente inúteis tentam ainda resistir à lufada de ar gelado que acaba de entrar pela janela. Ninguém se inclina sobre o féretro armado em cima da mesa da sala,  o rosto macerado pela dor; ninguém se joga sobre o corpo, tentando retê-lo por mais alguns instantes. As mulheres, todavia, que há bastante tempo descansavam, sonolentas, recomeçam suas rezas, agora, ante a iminência do ato derradeiro, com muito mais empenho, atropelando-se umas às outras, perdendo-se no ritmo desarvorado, esganiçando palavras que nem elas mesmas sabem o que significam. Algumas pessoas levantam-se, indecisas, sem saber como deve continuar aquela ação. Ana permanece como está, as mãos soltas no regaço, o olhar turvo, o busto um pouco levantado demais para quem  vela desde a véspera.
Primeiro as mulheres sentadas do lado de trás do caixão. Ao verem-no ali de pé,  estancam assustadas a ladainha, enfraquecendo de repente os apelos em favor da alma do velho. Então as demais, as que estão de costas para a porta, lêem o susto nos olhos das companheiras e viram-se de uma só vez para trás. Ele chegou, ouve-se alguém gritar para os fundos, onde os homens fumam e contam piadas.  
Recortado contra a manhã clara e fria que espreita a sala escura pela porta aberta, João Pedro observa como as mulheres subitamente interrompem suas rezas por descobrirem-no sombra ali parado; vê como os homens chegam da cozinha, atropelando-se pelo corredor demasiadamente estreito e desembocam na sala pela porta oposta. O recém-chegado adivinha curiosidade e dúvida em alguns olhares, ternura e esperança na expressão de antigos companheiros. Não entra logo, também ele ansioso, sem saber como será recebido depois de tantos anos de espera. Entre as mulheres, tão-somente duas ou três fisionomias um pouco mais familiares e uma cabeça que não se volta, onde ele supõe muitos cabelos brancos.
Por fim, quando parece que nada mais vai acontecer, João Pedro com sua sombra invade silenciosamente a sala e pendura o chapéu num prego ao lado da janela. Ninguém mais se move, ninguém ousa falar, e mesmo a respiração parece estorvo para quem não pretende perder nada da cena que se desenrola ali, à frente de todos.
São apenas quatro passos, mas João Pedro avança arfante e com extrema dificuldade - as quilhas de seus pés, entorpecidos na espera, singrando aquele mar de flores murchas. Só quando atinge o espaldar da cadeira onde Ana o espera e depois de apoiar suas mãos pesadas nos ombros da mulher é que João Pedro percebe perplexo que os tocos de vela agonizam  em seus castiçais. Ana segura a mão do amigo em seu ombro, tentando retê-lo mas de maneira relutante. E assim, amparados um no outro, sem rota possível, todavia, os dois permanecem por longo tempo.
É o primo de João Pedro quem, por fim, consulta o relógio e informa que não se pode esperar mais. Pega novamente a tampa do esquife, que havia largado com a chegada do primo, e espera que Ana contemple o finado pela última vez. Ana move os lábios quase imperceptivelmente:
- Adeus, meu pai.
Um homem com as duas mãos pousadas nos ombros de uma mulher, protetor, as pessoas olham enternecidas, acreditando ser o destino que finalmente se cumpre. Então, como acham que ali o ritual já está completo, levantam-se os que estão sentados e juntam-se aos que tudo observam de pé para sair acompanhando o féretro, que já está na calçada.
Quando, por fim, o último toco de vela expira, João Pedro força levemente a mão presa, e Ana a solta sem mover a cabeça, sem manifestar emoção alguma, mesmo porque, ela já não tem certeza de sentir o que quer que seja. Volta-se finalmente para vê-lo pegar o chapéu e sumir na intensa claridade da manhã recortada pela porta.  


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