segunda-feira, 29 de abril de 2013

CARTA CAPITAL| A DENGUE CADA VEZ MAIS PERTO DE VOCÊ



Há quem diga que Deus nos manda as desgraças para apurar-nos o espírito. Como não sou versado em teologia, nada digo, pois seria operar em terreno desconhecido, o que, diga-se de passagem, quase nunca dá certo. Só me ocorre esse pio pensamento por causa da dengue que nos ronda. Aliás, dizer que foi por causa da dengue é um jogo quase metonímico. Na verdade, a história de um velho conhecido foi que me sugeriu a possibilidade de estar certa a assertiva acima.

 Poderia, então, recomeçar esta crônica, dizendo que os conhecidos existem para aprendermos algumas lições de vida.

Nosso conhecimento é pouco mais do que de vista e de chapéu, como elegantemente nos informou Bentinho, mas o suficiente para que aqui em casa saibamos muito do que acontece ao Jeremias.

Em uma das poucas vezes em que nos conversamos, tive excelentes lições de egoísmo familiar. “Se a minha família está bem, quero que o resto do mundo se frega!” Isso já faz alguns anos. Não vivíamos ainda tão ansiosos, tão invadidos e inseguros. Quando quis contestar seu pensamento, ele me veio com o argumento da autoridade e usou um pensamento muito caro a uma porção de gente, mas principalmente à M. Thatcher: não existe sociedade. Me calei. De lá para cá, o Jeremias teve de gastar bastante dinheiro para manter-se fiel à sua “filosofia de vida”, como naquele então me declarou. Não é provável que ele saiba o que seja filosofia, mas cheguei à conclusão de que a culpa não era sua: muita gente usa a expressão.

Primeiro, ele teve de construir um verdadeiro bunker  aqui no bairro, no nosso bairro, que é um bairro aprazível, de casas leves para pessoas amantes da vida, da paisagem e dos vizinhos. Só com a muralha de sua casa, disse-me certa vez uma arquiteta, ela construiria duas casas confortáveis. Só com a muralha. Seu carro, com vidros fumé sempre fechados, entrava e saía pelo portão eletrônico sem que soubéssemos o que ou quem ele carregava. Um mecânico, cuja amizade me honra, garantiu que os vidros são à prova de balas. E eu acredito.

Ele fechava-se cada vez mais, indiferente ao mundo aqui fora, este “mundo que se frega”. Quando a epidemia de dengue começou a alastrar-se, o Jeremias deu ordens para que se mantivesse o quintal muito limpo, bem tratado, sem uma única ruga. Além disso, mandou proteger todas suas janelas com tela muito fina, uma telinha verde que dá um agradável tom cromático à paisagem.

Conta-se por aí que o único furo de um milímetro de diâmetro existente nas telas protetoras de suas janelas foi descoberto por um aedes aegypti do sexo feminino. Um mosquito nascido e criado em algum dos quintais das redondezas. E o Jeremias baixou ao hospital às pressas atacado pela dengue.

O mundo, meu caro Jeremias, é um só, por mais que tentemos proteger-nos contra vizinhanças indesejáveis. Eu pensava no Jeremias e em sua aversão a tudo que não fosse a sua família e o quintal de sua casa, quando me lembrei das relações entre países ricos e países pobres. Mas neste momento tocaram a campainha aqui de casa. Era uma funcionária uniformizada da prefeitura local, perguntando se em meu quintal havia pneus velhos, garrafas de gargalo para cima, latas abertas. Tive de interromper minhas reflexões.


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