Um
homem apenas
Não
tínhamos um campinho plano, como a turma do quarteirão mais pra baixo, mas
nosso gramado em declive era da melhor qualidade. Meio tempo ficávamos chutando
para cima, contra todas as leis da natureza; meio tempo chutávamos para baixo,
e todos os santos nos ajudavam. Além do nosso gramado, contávamos como uma de
nossas vantagens sobre os adversários do outro quarteirão a existência daquela
casinha misteriosa e avulsa na parte mais alta de nosso campo, uma casa de
madeira construída sobre pilares muito altos de pedra a tijolo.
Quando
viemos ao mundo, já encontramos aquela casa plantada sobre suas longas pernas,
escondendo mistérios que nos infundia respeito mas principalmente muito medo.
Quando a bola subia com exagero e se aproximava da casa, não era qualquer um
dos nossos que se dispunha a ir buscá-la. Por duas vezes ela perdeu o rumo e
foi parar debaixo da caverna misteriosa. Ficamos olhando de longe, calados, sem
vontade de reiniciar a partida. Queríamos saber se o velho estava em casa ou
tinha saído como raramente fazia. A porta, a única, estava fechada, assim como
as duas janelas, mas isso, sabíamos por experiência, pouco significava.
Os
costumes do velho habitante daquela casa eram inteiramente desconhecidos e ele
nada fazia para que pudéssemos deles depreender alguma rotina. Era um velho de
cabelos curtos e brancos, um rosto avermelhado e olhos aguados, cor do mar. Ele
não falava nossa língua, pelo menos fora essa nossa dedução nas poucas vezes em
que alguém do bairro tivera a idéia de se comunicar com ele. Fechado. Não
queria saber do mundo, e o mundo dele nada sabia.
Às
vezes aparecia no alto da escada também de madeira, com cerca de uns dez degraus.
E toda vez que aparecia, trajava um terno azul marinho, camisa branca sem gravata.
Já sabíamos: passava a chave na porta, descia os degraus da escada, atravessava
a passos lentos o pedaço de campo que o separava da rua e desaparecia na
esquina. Um dos nossos companheiros, que morava para aqueles lados, informava
que o velho tomava sempre o ônibus da mesma linha que levava para o centro da
cidade. Até ali iam nossos conhecimentos. Onde ia ele? O que fazia? Ninguém propunha
uma resposta. Ao cair da tarde, quando voltava, seu cabelo liso e branco tinha
descido sobre a testa suada. Ele subia os degraus, pegava a chave que trazia no
bolso, abria a porta e desaparecia de nossas vistas.
Os
policiais, movimentos treinados, subiram a escada com o nariz escondido atrás
de seus lenços brancos. Protegidos por adultos de tanta autoridade, nos
encorajamos a chegar mais perto, até a distância de onde já se podia sentir o
cheiro forte de carniça.
Eles
arrombaram a porta frágil que rachou com estardalhaço sob a ação de um pé de
cabra. Olhávamos tudo aquilo com o espanto de meninos. Nunca tínhamos visto
heróis de tão perto assim. Em seguida os funcionários do rabecão, os dois,
subiram também, carregando com dificuldade um longo recipiente de lata.
Os
quatro homens não se demoraram muito no interior da casinha. Aquela espécie de
canoa de lata parecia agora muito mais pesada, pelo modo como a transportavam:
os policiais tiveram de ajudar a descê-la. Empurrada, enfim, para dentro do
rabecão, sem uma palavra, os dois carros roncaram, atravessaram nosso campinho
e desapareceram pela rua por onde o velho sempre desaparecia.
A
mãe do Alfredo, que ia passando, perguntou:
-
O que foi que aconteceu?
-
Um homem, respondeu seu filho.
Muito bom, Menalton.
ResponderExcluirGrande abraço.
Brigadão, Sônia.
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