O conto abaixo faz parte da coletânea O peso da gravata ainda inédita.
Os óculos
Entrou na cozinha com pernas atrasadas de tanta pressa e o suor
alagando-lhe a testa, onde sentiu a explosão. Sua cabeça fez menção de voltar
sozinha e sem óculos. Dedos trêmulos tatearam seu rosto à procura de sangue,
mas assim no escuro era impossível distinguir a vida do esforço, tudo líquido e
viscoso, uma coisa só. Então seus dedos nervosos descobriram a ausência dos
óculos.
A porta aberta do armário? A porta
aberta do armário. Que mais poderia estar com a altura de sua testa no caminho
entre a porta da cozinha e a chave, além da porta do armário?
De lábios abertos e dentes cerrados, aspirava um ar com ruído fricativo
para expressar a dor que vinha chegando. A mão esquerda, apalpando o ar vazio,
obstinada, procurava obstáculos. Com a testa doendo, qualquer objeto era
obstáculo, porque estava noite.
Deu o primeiro passo em alguma
direção, mas parou temeroso porque não ver era causa de muita insegurança.
Arrastou o pé de volta e descobriu satisfeito que o pé não tinha roçado sequer
nos óculos. Chegou a pensar que essa era uma boa razão para ficar alegre, mas
não teve tempo de usufruir da alegria apenas prometida porque olhou para baixo,
onde supunha o piso, e olhou com todo esforço de seus olhos de pupilas redondas
e azuladas sem ver nada além de grandes manchas leitosas mergulhadas em trevas
densas. Só então percebeu suas pernas trêmulas, como atacadas por algum
cansaço.
Seu olhar quase parado, inútil, não lhe concedia um conhecimento, a noção
da distância entre a altura em que se mantinham seus pensamentos e o piso de
ladrilho onde por certo estariam agora seus óculos. Mas que sei eu de
distâncias?, pensou ele sob o peso do isolamento em que se via agora submerso.
Como conhecer qualquer espaço sem conceber o infinito, a não-forma, a abertura
para o inexistente?
Era turvo seu pensamento sobre as distâncias, porque sem luz não existem
cores e sem elas deixam de existir as formas. A distância, não a distância
abstrata que só existe como conceito, na mente, mas a distância concreta,
individualizada é uma dádiva da visão.
Quando lhe bateu o arrependimento por ter começado a pensar, tentou
concentrar-se nas pernas, que tremiam, contudo, tê-las apenas como constatação
das duas mãos, era como se se tratasse de um objeto qualquer, vivo, mas alheio
a seu próprio corpo. Então agachou-se até assegurar-se com as mãos espalmadas
que não sentaria sobre seus óculos. E sentou-se com seu pequeno peso e sem medo
no piso da cozinha.
Ao lembrar-se de que viera com pressa atrás da chave, voltou a ter
pressa. Agora, entretanto, inutilmente, pois estava sentado sobre si mesmo no
piso frio de ladrilho da cozinha. E sem noção exata do que havia em sua volta.
Desde criança não via mais o mundo daquela altura em que agora mantinha os
olhos, mas agachar-se também não lhe concedia um novo ponto de vista a respeito
do mundo. Sentiu no peito o galope da pressa, mas conteve-se, exercitando seu
autodomínio.
Numa fulguração da pressa, teve o relume, incerto e instantâneo, pensando
que poderia guiar-se pela memória, e chegou a ver a mesa com suas cadeiras, no
lado esquerdo e, vizinha dois passos, no lado oposto, a pia com a louça da
véspera. Ao lado do bebedouro, pendurado na parede, o molho de chaves, que
viera procurar, depois de ter descido até o térreo, acossado pelo atraso. Mas
foi apenas um relume, como um suspiro que se interrompe no meio, pois ficou em
dúvida sobre os pontos cardeais. A memória já não lhe informava em que posição
estava seu corpo, que relação espacial ele mantinha com as quatro paredes da
cozinha. Como saber se o fogão ficara-lhe às costas, como parecia, ou à frente,
como poderia ser? Então resolveu desbravar o ladrilho todo com as mãos,
confiando apenas no faro de seus dedos, que saberiam distinguir um par de
óculos de qualquer outro tipo de objeto.
Sentado sobre os calcanhares, primeiro apalpou os joelhos, minucioso, os
joelhos que mantinha colados ao piso frio. Depois de certificar-se de que
estava pronto, lançou-se à aventura de esquadrinhar metodicamente cada
centímetro daquele imenso campo invisível. Será isso a morte, esse imenso nada?
ele perguntou-se num susto. Mas sua mão esbarrou em algo liso e duro, que lhe
pareceu o pé da mesa, e a sensação, por um instante, garantiu-lhe a vida.
Sentou seu peso sobre os calcanhares para descansar e novamente seus
dedos, ainda mais nervosos, foram perscrutar a testa e as faces, onde voltou a
descobrir uma umidade viscosa, que talvez fosse sangue misturado ao suor.
Limpou os dedos na calça e acalmou-se um pouco. Não saber a natureza da umidade
já era o limiar de uma solução.
Quando se lançou, pouco depois, em uma direção ainda inexplorada e bateu
com a cabeça no assento de uma cadeira, pela primeira vez teve vontade de
chorar. Mas continuou, porque o sentido de urgência, impulso inicial, latejava
em suas têmporas.
Seu atraso já era agravado por minutos em que ele estava perdido, sem
saber quantos eram. Estar à beira do desespero confrangia-lhe o coração.
Na extensa e fria superfície do piso, além do pé da mesa e das pernas de
uma cadeira, nada mais suas mãos conseguiam encontrar.
Arrastando-se em volta e por baixo da mesa, convenceu-se finalmente de
que seu par de óculos voara para outro lado qualquer. Mas que lado? Mesmo sem
muita certeza, quando iniciou a busca, tinha uma vaga idéia de como se
distribuíam as paredes da cozinha pelos quatro pontos cardeais. Agora estava
confuso, sem conseguir orientar-se com segurança. Quando bateu pela segunda vez
com a cabeça no assento da cadeira, descobriu com raiva que andava em círculos,
repetindo as áreas por onde já passara. Mas então é isso, indignou-se, a linha
reta então é isso, não passa da ilusão do progresso?
Tirou a gravata com cuidado depois de esfregar as mãos novamente na
calça. Mas, ao tirá-la teve o súbito pressentimento de que era um gesto inútil,
pois nada mais poderia ser feito. Parou com a cabeça erguida e a testa
enrugada, como se bastasse essa atitude para ter uma noção aproximada do tempo
gasto na procura dos óculos. Desistiu de continuar tirando a roupa. O dia já
andara mais do que a distância entre a porta e o armário: não existia mais
atraso.
Resolveu então continuar sentado no piso frio para descansar.
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