sexta-feira, 31 de maio de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto que segue, consta do livro À sombra do cipreste, em 6ª edição pela Global Editora em 2012. Foi vencedor do Jabuti em 2000, Livro do Ano, ficção.
No dorso do granito

Da tarde não resta mais que uma claridade leitosa no céu pêssego-maduro, um céu largo pairando por cima das árvores, por cima de Solano, que, olhando para o alto, testa enrugada, perde a vontade de estar contente  porque  tarde assim lhe parece perigosa, mensageira de desgraça. Arranca uma haste de capim para ter o que morder pois não  gosta daquele céu parado. Chegara com o sol morrendo, claridade suficiente ainda, entretanto, para um exame do lugar: seu dever, como sabe, e  hábito seu. Não pode estar errado. O imenso elefante de granito escuro imerso na sombra compacta de uns açoita-cavalos, o barranco de dois metros de altura despenhadeiro sobre a estrada, a pequena sebe natural, de macegas e vassourinhas a esconder dos passantes o dorso de pedra. Fechando a retaguarda, uns pés inexplicáveis de bananeiras. Pequenas diferenças com o que vinha imaginando, mas todos os detalhes encaixados no que lhe fora descrito.
Para além da estrada, cruzando a cerca, desce um descampado que se estende até o pé do morro e termina num capão escuro. Nenhum movimento por ali, nada que possa ter vida senão, talvez,  alguns seres miúdos, desses que  rastejam sem altura, anonimamente. Nada que se mova, à vista: o mundo imobilizado, de respiração presa. Solano bate uma das mãos no bolso da jaqueta de couro, o que pode ainda estar faltando?, caminha um pouco, apreciando a competência com que suas botas vão à frente farejando a terra esturricada, espia os arredores, monta no dorso da pedra e acende o primeiro cigarro. Tudo certo: agora é só esperar.

São os melhores momentos de sua vida, estes, quando, sentado à espera, sem  nada a fazer, solta a fumaça do cigarro lentamente e acompanha com olhar de menino sua subida azul espiralada. Já ficou parado, vendo passar o tempo, de muitas maneiras, mas a única que o comove todas as vezes é esta: o Sol desaparecendo. Molha os lábios com a língua. Estaria bem melhor não fosse o calor. Solano limpa o suor da testa na manga da camisa. Coisa de légua e meia para trás, atravessara um córrego fundo, de água bonita, remansosa. Água de uma cor fria por conta das sombras de vimes e  salgueiros mergulhando os braços até alcançar com os dedos o leito lodoso do ribeirão: os cotovelos molhados. Frescor de água, silenciosa, mas a um estirão de desanimar, mesmo para uma garganta pegando fogo. Deveria ter trazido um cantil, qualquer vasilha, como sempre faz, mas tinha sido uma proposta inesperadamente caída do céu, que não poderia recusar: finalmente sua vez. Então, com toda aquela correria, não tivera tempo dos arranjos necessários. Não fosse a penumbra do crepúsculo, talvez ainda pudesse encontrar algum poço abandonado pelas vizinhanças, o lugar com vestígios de antiga habitação - uma tapera: as bananeiras, uns restos de tijolos e um pedaço de louça branca, algum prato quebrado, vistos na chegada. O Sol, no entanto, já afagava as copas desgrenhadas no alto do outeiro fronteiriço.

Risco preto silencioso, raio sem brilho, um curiango fere o céu - nesga de azul luminoso enquadrado entre copas de árvores - e pousa na estrada. Solano, subitamente assustado, leva a mão ao peito e apalpa o maço de cigarros no bolso da camisa. Cá está ele, companheiro. Confere o bolso da jaqueta: não passa sem um maço de reserva. Seu medo, quando é mandado para esses ermos do mundo a muitas léguas da venda mais próxima, é ficar sem cigarro. Sobretudo à noite. À mesa: encher o pandulho de vagabundo nenhum. Mal sabia o pai que já naquela época a mãe furtivamente lhe passava as moedas com que comprava seus primeiros maços de cigarro. Vida como a de vocês, essa que pra mim não quero. Só espero minha vez.

O céu, então, escurece de repente, sem transição, e duas estrelas, das  pequenas, aparecem piscando na superfície translúcida: Solano acaba de transpor o limite entre dia e noite. E isso o inquieta. E assusta. Num salto, fôlego suspenso, o corpo rígido dilacera a superfície do rio. Dia, noite, os ventos e a chuva: sem comando de qualquer ser humano - nem os mais poderosos da Terra, nem os maiores fazendeiros do mundo. Seu respeito místico pelos fenômenos da natureza, que ele não entende, é incômodo como um medo. Melhor  lidar com fraqueza de gente. O medo é um verme fedorento que mora dentro dele, que sobe até a garganta depois desce até os intestinos. Às vezes, ele sente o bicho se movendo, faminto, roendo tudo que cai de bom no vazio do seu corpo, lambendo seu coração com língua de lixa. Nestas horas chega a sofrer uns repuxos no peito, saudade da mãe, e do pai também, mas principalmente da mãe, que lhe passava sorrateira aquelas moedas. Com o pai, à mesa, não tinha como ficar, porque ele repetia aquela história de encher o bucho de marmanjo. Mesmo assim, às vezes, sentia vontade de voltar a viver com eles, naquele sossego deles e com aquela mesma falta de qualquer resto de esperança. Agora, entretanto, não tem mais por que esperar. Amanhã de manhã vai receber o pagamento. Uma prova qualquer (os músculos de seu rosto repuxam) e recebe o combinado. Porque levar a vida que o pai sempre levou, de sol a sol na roça, todos os dias do ano, pra não ter mais do que a comida, de cada dia, ah, isso é que não, melhor ter as vísceras corroídas por este verme fedorento.

À mesa, depois de um dia abafado e úmido como hoje, seu pai, furioso, e é justo um velho ficar enchendo o pandulho de um vagabundo?, a conversa difícil naquela idade, mastigada com a comida intragável. Solano sacode a cabeça, preso entre os dentes um sorriso sardônico, e arroja para a estrada o toco aceso  do cigarro. Não que seja um trabalho prazeroso: a náusea inevitável à vista da morte, o desconforto estético de ver um corpo humano inerme e frio. Mas era sua oportunidade, talvez a única. Talvez a última. A brasa vermelha descreve uma parábola ampla e lenta, desmanchando-se em centenas de fagulhas contra a sebe de vassourinha e macega. O mundo se alegra, por um instante - pequeno espetáculo fulgente, que a noite trata, pressurosa, de devorar e esconder em seu ventre imundo e escuro.

Solano sente na cara a virada do vento. É de repente e de maneira imprevista, depois de uma longa pausa de vazio absoluto. Ruído nenhum, nenhum movimento. Galhos e folhas - rebarbas de uma estátua negra - totalmente imóveis, sem respiração. Então chega este vento morno, saído quem sabe das entranhas do planeta, arroto da terra, um vento com cheiro de enxofre, quente e áspero. Amanhã mesmo, seu vagabundo, amanhã mesmo. Nem um minuto a mais. Na roça ou na estrada. Ele, seu pai avelhantado, o corpo roído pelas traças, alquebrado pelo trabalho. Ele, um homem com um dos pés na outra margem de seus limites, por isso mesmo desesperado. Um vento assim, pensa Solano, e , sem mexer a cabeça, revira os olhos tentando decifrar o código deste vento, um vento assim não traz boas notícias.

Espera com paciência e  preso à pedra que o vento passe. Então começa a ajeitar meticulosamente seus terens sobre o dorso áspero e irregular. Estende primeiro um lenço e sobre ele vai dispondo lado a lado os apetrechos que deve manter ao alcance da mão. Não de comerem  juntos, o conhecimento, nem de dirigir a palavra, mas de passagem, meio de longe, os cumprimentos, e o suficiente para que já sinta muita dificuldade no serviço. Puxar  gatilho é o de menos: o mais simples. A distância ajuda. A noite também. Acerta um vulto. Alguns amigos, que a bala em chegando e acertando o alvo provoca um coice no ombro, avisando. Muitas vezes puxara o gatilho com vontade de sentir aquele coice, uma coisa vantajosa, um truque sabido por pouca gente. Jamais conseguira. O pior, no trabalho encomendado, não é puxar o gatilho e ver o alvo tombar de toda sua altura. O pior é depois chegar perto, ver o rosto conhecido ainda com as marcas da vida que foge devagarinho, e arrumar uma prova da execução do serviço. Tudo isso é bem mais fácil se o fulano é visto pela primeira vez, não tem um nome, uma casa, não tem uma história. Bate a mão nos bolsos da blusa,  agitado, o que mais pode estar faltando? A melhor solução: comprar uma fazendola bem longe, esconso do mundo, e levar junto os dois velhos - apesar de tudo. Sua mãe, no sossego,  ajudando a criar os netos. O pai, vagabundeando de pandulho cheio.

  Quando a lua se desprende dos galhos do mais alto açoita-cavalo e põe-se no céu a flutuar, Solano abre todos os sentidos, engatilhado e tenso, a partir de agora a qualquer momento. Na boca uma saliva amarga que ele não sabe bem se da fome que o acompanha desde que chegou ou se do medo que precisa subjugar e engolir. É justo, ele repetia sem coragem de encarar ninguém, é justo um velho como eu. Agora, então, decerto muito mais acabado. Tantos anos já. A posição começa a parecer cansativa. Solano estira as pernas: não sabe quanto tempo terá de esperar.

Antes de espichar o corpo sobre o dorso do granito - descansava um pouco, mas de olhos abertos - confere com as pontas dos dedos seus apetrechos perfilados e de prontidão. Os olhos abertos não seguram os pensamentos, que, em bando, refazem percursos de sua vida. Quando o sono desce das copas escuras como carícia de plumas e fecha seus olhos, Solano deita sobre o lado direito, dobra os joelhos e ensaia um sorriso que não chega a transpor os lábios ressecados. Então  ajeita-se melhor, adaptando o corpo à superfície áspera e irregular, arruma o chapéu debaixo da cabeça e pisca prolongado.

Quando abre novamente os olhos, o sol o ofusca, os galhos de vassourinha abanam ainda, tocados de leve pela brisa matinal.

                                              

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