sábado, 1 de junho de 2013

CARTAS A UM JOVEM POETA (3)

E continuamos com as palavras daquele que foi talvez o maior poeta do século XX, em seu livro Cartas a um jovem poeta.

Viareggio perto de Pisa (Itália),
23 de abril de 1903

Fiquei muito alegre, caro e prezado senhor, com sua carta de Páscoa,
pois ela diz muitas coisas boas a seu respeito. O modo como o senhor falou da grande e amável arte de Jacobsen demonstrou que não me enganei ao encaminhar sua vida e suas várias questões em direção a essa abundância.

Agora o senhor descobrirá  Niels Lyhne,  um livro das glórias e das
profundezas; quanto mais a gente  o lê, parece que tudo se encontra nele, do mais leve perfume da vida até o gosto pleno e carregado de seus frutos mais pesados. Ali não há nada que não tenha sido entendido, apreendido, experimentado e reconhecido nas ressonâncias vibrantes da lembrança; nenhuma vivência foi ínfima demais, e o menor acontecimento se desdobra como um destino, o próprio destino é como um tecido maravilhoso, amplo, no qual cada fio é conduzido por dedos de uma delicadeza infinita, posto ao lado de outro fio, ligado a centenas de outros que o sustentam.


O senhor experimentará a grande felicidade de ler esse livro pela primeira vez, passando por suas incontáveis surpresas como em um sonho renovado. Mas posso lhe dizer que, mesmo depois, o leitor volta sempre a percorrer esses livros com espanto, e que eles não perdem nada do seu poder fantástico, persiste seu caráter fabuloso, com o qual cumularam quem os leu pela primeira vez.

Sempre temos prazer com eles, ficamos cada vez mais agradecidos e, de algum modo, melhores, com uma visão mais simples, com uma fé mais profunda na vida e sendo mais afortunados e maiores nela.

Posteriormente, o senhor precisa ler o maravilhoso livro sobre o destino e sobre o anseio de Marie Grubbe, além das cartas, das páginas de diário e dos fragmentos de Jacobsen, passando por fim a seus versos, que (embora a tradução seja apenas mediana) vivem em ressonâncias infinitas. (Por isso, recomendo ao senhor que compre, quando tiver a oportunidade, a bela edição das obras completas de Jacobsen, que inclui tudo isso. Ela foi publicada em três volumes em Leipzig, com boa tradução de Eugen Diederichs, e custa, pelo que sei, apenas cinco ou seis marcos por volume.)

Com sua opinião sobre  Aqui deveria haver rosas... (essa obra de incomparável refinamento e forma), o senhor certamente tem toda razão contra a pessoa que escreveu a introdução. Por isso, que fique registrado aqui, desde logo, um pedido meu: leia o mínimo possível textos críticos e estéticos  -  ou são considerações parciais, petrificadas, que se tornaram destituídas de sentido em sua rigidez sem vida, ou são hábeis jogos de palavras, nos quais hoje uma visão sai vitoriosa, amanhã predomina a visão contrária. Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica. Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas.

Dê razão sempre a  si  mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a
outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir sua própria e silenciosa evolução. Uma das novelas incluídas no livro Seis novelas, desenvolvimento próprio, tranqüilo e sem perturbação, algo que, como  todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo  está em deixar amadurecer e  então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma  nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.

Não há nenhuma medida de  tempo nesse caso, um ano de nada  vale, e mesmo dez anos não são nada. Ser artista significa: não  calcular nem contar; amadurecer  como uma árvore que não apressa a sua seiva e  permanece confiante durante as tempestades de   primavera, sem o temor de que o verão
não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como  se  a eternidade se  encontrasse diante deles, com toda a amplidão e  a serenidade, sem preocupação alguma. Aprendo  isto diariamente, aprendo em meio  a dores às  quais sou grato: a
paciência é tudo!

Richard Dehmel: com relação a seus livros (e, diga-se de passagem, também com relação à pessoa, que conheço superficialmente), ocorre que, ao encontrar uma de suas belas páginas, sempre tenho receio da seguinte,  que pode estragar tudo e transformar o que era louvável em algo indigno. O senhor o caracterizou muito bem com as palavras: "Viver e escrever no cio". De fato a vivência artística está tão inacreditavelmente próxima da vivência sexual, de sua dor e de seu prazer, que os dois fenômenos na verdade constituem apenas formas diversas de um mesmo anseio e de uma mesma ventura. Se, em vez de cio, pudéssemos dizer sexo, em um sentido elevado, amplo, puro, não afetado por nenhuma suspeita equivocada por parte da Igreja, a sua arte seria grandiosa e infinitamente importante. Sua força poética é intensa como um impulso primitivo, ela possui alguns ritmos próprios violentos e jorra como que de uma montanha.

Contudo, parece que essa força nem sempre é sincera e sem vaidade. (Mas essa é mesmo uma das mais difíceis provações para o criador: ele precisa permanecer sempre inconsciente, desprevenido de suas melhores virtudes, caso não queira tirar delas a inocência e a integridade!) Quando então, irrompendo em seu ser, essa força chega à sexualidade, não encontra ali um ser humano inteiramente puro, como necessitaria encontrar. Há ali um mundo sexual que não é totalmente amadurecido e puro, um mundo que não é suficientemente humano,  apenas  viril,  que é cio, embriaguez e intranquilidade, carregado com os velhos preconceitos e vaidades com que o homem deformou e sobrecarregou o amor.

Como ele ama apenas enquanto homem, não enquanto ser humano, há em suas sensações sexuais algo restrito, aparentemente selvagem, enraivecido, temporário, efêmero. Essa arte não é destituída de máculas, ela é caracterizada pelo tempo e pela paixão, pouca coisa dela há de durar e permanecer. (Mas a maioria das formas de arte é assim!) Apesar disso, porém, é possível alegrar-se profundamente com o que nela é grandioso, sem se perder com isso e sem se tornar um adepto daquele mundo dehmeliano, tão infinitamente inquieto, recheado de adultérios e distúrbios, distante   dos destinos reais, que causam mais sofrimentos do que essas perturbações temporárias, mas também dão mais ocasião para a grandeza e mais coragem para a eternidade.

Por fim, no que diz respeito a meus livros, adoraria lhe enviar todos os que poderiam  trazer alguma alegria para o senhor. Mas sou muito pobre, e meus livros não me pertencem mais, desde que foram publicados. Eu mesmo não posso comprá-los e, como gostaria de fazer com freqüência, dá -los para as pessoas que lhes demonstrariam afeição.

Por isso lhe escrevo em um papel os títulos (e as editoras) dos meus livros mais recentes (ao todo, publiquei bem uns doze ou treze) e deixo a seu cuidado, caro senhor, encomendar algum deles quando tiver uma oportunidade.

Gosto de saber que meus livros estão em suas mãos.
Felicidades!
Seu,
Rainer Maria Rilke


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