sexta-feira, 30 de agosto de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Um conto inédito.

Nossa perna

        Não há sol debaixo deste caramanchão além das pequenas manchas redondas sem grande serventia para calor. Me distraio com elas, que se movem ao sabor da brisa, muitas vezes as perco, mas quase sempre as reencontro. Passei assim a vida inteira:  tentando reter nas mãos abertas pequenas manchas de luz, que perdia agora para encontrar mais tarde. A Moema sempre dizia: Você parece que tem as mãos furadas. Lutamos a vida inteira juntos e agora temos o costume de juntos descansar debaixo deste caramanchão. Minha velha respira como se estivesse fingindo viver, aqui do meu lado, com suas mãos ocupadas com a lã e as agulhas. Às vezes aproveitamos estas horas da tarde, enquanto descansamos, para pensar na morte, que não deve andar muito longe, mas o vazio, nestas ocasiões, torna-se tão grande que raramente dedicamos muito tempo a considerações sobre o futuro. 

Aqui a meu lado, na cadeira preguiçosa, ela trama um fio de lã com duas agulhas mais ágeis do que meus olhos, como ela fez no passado, para nossos filhos, mais tarde para o bando de netos, e agora por mero hábito. Seus óculos de lentes muito grandes protegem-lhe os olhos.

Tento examinar o céu, como sempre faço desde que escolhemos este caramanchão como teto de nossas tardes, mas só vejo folhas verdes e cachos pendurados, verdes ainda por estarem em estado potencial. Também, nem sei por que esta necessidade de saber se há nuvens pairando sobre nossas cabeças e de que tipo são, se escuras e densas, se apenas flocos de algodão, silenciosas e satisfeitas. A dez passos da porta da cozinha, impossível que alguma chuva, por traiçoeira que seja, nos surpreenda ao relento.

Um grunhido da Moema informa que acaba de errar um ponto, precisando voltar uma carreira inteira. Ela nada me diz. Nem precisa. 

Não há pressa na preparação do cachimbo, cada gesto uma longa história, um aprendizado. Não há pressa, pois chegar é urgência juvenil. Com mãos meio esquecidas, um pouco trêmulas, a piteira, depois de tudo limpo, é encaixada no cabo e o fumo, com leve pressão, enche o fornilho. Assim. Então, grudada à cabeça de um palito de fósforo, uma chama revoluteia a um leve suspiro da brisa, acalma-se, em seguida, e é levada à boca do cachimbo, que a atrai como se a quisesse sugar. A fumaça da primeira tragada, azul, diáfana, sobe para perder-se entre as folhas verdes do caramanchão.  

Um avião passa com destino incerto, talvez certo, quem pode saber?, apenas um ponto metálico que imagino sem ter visto. As pessoas, uma ideia que me perturba, vivem para cumprir tarefas e mais nada. Elas só têm a identidade do que fazem, e quase nunca sabem por que fazem. Asas, turbinas e fuselagem. Um ponto que passa em linha reta. Seu trovão distante vai-se dissipando entre nuvens, até extinguir-se inteiramente, sem norte ou sul: puro silêncio, o bafejo desta aragem fresca.

Pigarros e suspiros, um olhar de vez em quando, e cá ficamos nós transcorrendo com tranqüilidade apoiados em nossas presenças.  

Depois de acompanharem a lenta subida em voluta, da fumaça, meus olhos descem fracos ao rosto concentrado da minha velha. Esta Moema eu conheci com um rosto ainda jovem, enérgico, quando viver era uma vontade imperiosa, e ela enfrentava com valentia as lutas, que eram de nós dois. As rugas foram chegando imperceptíveis, cada uma delas, sem pressa, mas de forma irreversível. Muitas vezes, por culpa das necessidades e apelos da vida nem percebia as transformações por que passava o rosto da minha mulher. Muitas vezes me deixei engolfar pelas agitações de cada dia e mergulhado nelas ficava dias e semanas, sem notar que nosso cabelo branqueava e nossas rugas se acentuavam. Contemplo-a demorada e enternecidamente. Então meu olhar volta-se para dentro e não percebo quando a Moema larga o tricô e me encara.

− Que é isso, meu velho, nunca me viu?

Minha primeira resposta é um sorriso cheio de antiguidades no rosto.

− Você ainda se lembra do tempo que a gente jogava sério? Quem é que ria primeiro?

− A gente nem sabia que aquilo já era namoro. Mas quem ria primeiro era você, com seu nervosismo e sua pressa.

Suspiramos praticamente o mesmo suspiro. Então estico o braço com mão sorrateira e acaricio o joelho da minha velha. Não posso imaginar por que, de repente, pratico um gesto há tanto tempo abandonado. Ela também sorri, esquecida de suas rugas.

− Passar a mão na tua perna, antigamente, fazia meu corpo todo entrar em colapso. Meu cérebro não funcionava mais.

− E pensa que a vertigem também não me pegava?

Deixo a mão apoiada em seu joelho, enquanto ela volta a seu tricô. È uma troca comovente de calor e ternura. Ficamos assim, muito tempo em silêncio, então comento:

− Excitar como antigamente, não me excita mais, é claro, mas se você perdesse esta nossa perna aqui, eu acho que não conseguiria andar só com três.

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