Um conto inédito.
Não há sol debaixo deste
caramanchão além das pequenas manchas redondas sem grande serventia para calor.
Me distraio com elas, que se movem ao sabor da brisa, muitas vezes as perco,
mas quase sempre as reencontro. Passei assim a vida inteira: tentando reter nas mãos abertas pequenas
manchas de luz, que perdia agora para encontrar mais tarde. A Moema sempre
dizia: Você parece que tem as mãos furadas. Lutamos a vida inteira juntos e
agora temos o costume de juntos descansar debaixo deste caramanchão. Minha
velha respira como se estivesse fingindo viver, aqui do meu lado, com suas mãos
ocupadas com a lã e as agulhas. Às vezes aproveitamos estas horas da tarde,
enquanto descansamos, para pensar na morte, que não deve andar muito longe, mas
o vazio, nestas ocasiões, torna-se tão grande que raramente dedicamos muito
tempo a considerações sobre o futuro.
Nossa perna
Aqui a meu lado, na cadeira
preguiçosa, ela trama um fio de lã com duas agulhas mais ágeis do que meus
olhos, como ela fez no passado, para nossos filhos, mais tarde para o bando de
netos, e agora por mero hábito. Seus óculos de lentes muito grandes
protegem-lhe os olhos.
Tento examinar o céu, como sempre
faço desde que escolhemos este caramanchão como teto de nossas tardes, mas só
vejo folhas verdes e cachos pendurados, verdes ainda por estarem em estado
potencial. Também, nem sei por que esta necessidade de saber se há nuvens
pairando sobre nossas cabeças e de que tipo são, se escuras e densas, se apenas
flocos de algodão, silenciosas e satisfeitas. A dez passos da porta da cozinha,
impossível que alguma chuva, por traiçoeira que seja, nos surpreenda ao
relento.
Um grunhido da Moema informa que
acaba de errar um ponto, precisando voltar uma carreira inteira. Ela nada me
diz. Nem precisa.
Não há pressa na preparação do
cachimbo, cada gesto uma longa história, um aprendizado. Não há pressa, pois
chegar é urgência juvenil. Com mãos meio esquecidas, um pouco trêmulas, a
piteira, depois de tudo limpo, é encaixada no cabo e o fumo, com leve pressão,
enche o fornilho. Assim. Então, grudada à cabeça de um palito de fósforo, uma
chama revoluteia a um leve suspiro da brisa, acalma-se, em seguida, e é levada
à boca do cachimbo, que a atrai como se a quisesse sugar. A fumaça da primeira
tragada, azul, diáfana, sobe para perder-se entre as folhas verdes do
caramanchão.
Um avião passa com destino incerto,
talvez certo, quem pode saber?, apenas um ponto metálico que imagino sem ter
visto. As pessoas, uma ideia que me perturba, vivem para cumprir tarefas e mais
nada. Elas só têm a identidade do que fazem, e quase nunca sabem por que fazem.
Asas, turbinas e fuselagem. Um ponto que passa em linha reta. Seu trovão
distante vai-se dissipando entre nuvens, até extinguir-se inteiramente, sem
norte ou sul: puro silêncio, o bafejo desta aragem fresca.
Pigarros e suspiros, um olhar de
vez em quando, e cá ficamos nós transcorrendo com tranqüilidade apoiados em
nossas presenças.
Depois de acompanharem a lenta
subida em voluta, da fumaça, meus olhos descem fracos ao rosto concentrado da minha
velha. Esta Moema eu conheci com um rosto ainda jovem, enérgico, quando viver
era uma vontade imperiosa, e ela enfrentava com valentia as lutas, que eram de
nós dois. As rugas foram chegando imperceptíveis, cada uma delas, sem pressa, mas
de forma irreversível. Muitas vezes, por culpa das necessidades e apelos da
vida nem percebia as transformações por que passava o rosto da minha mulher. Muitas
vezes me deixei engolfar pelas agitações de cada dia e mergulhado nelas ficava
dias e semanas, sem notar que nosso cabelo branqueava e nossas rugas se
acentuavam. Contemplo-a demorada e enternecidamente. Então meu olhar volta-se
para dentro e não percebo quando a Moema larga o tricô e me encara.
− Que é isso, meu velho, nunca me
viu?
Minha primeira resposta é um
sorriso cheio de antiguidades no rosto.
− Você ainda se lembra do tempo que
a gente jogava sério? Quem é que ria primeiro?
− A gente nem sabia que aquilo já
era namoro. Mas quem ria primeiro era você, com seu nervosismo e sua pressa.
Suspiramos praticamente o mesmo
suspiro. Então estico o braço com mão sorrateira e acaricio o joelho da minha
velha. Não posso imaginar por que, de repente, pratico um gesto há tanto tempo abandonado.
Ela também sorri, esquecida de suas rugas.
− Passar a mão na tua perna,
antigamente, fazia meu corpo todo entrar em colapso. Meu cérebro
não funcionava mais.
− E pensa que a vertigem também não
me pegava?
Deixo a mão apoiada em seu joelho,
enquanto ela volta a seu tricô. È uma troca comovente de calor e ternura. Ficamos
assim, muito tempo em silêncio, então comento:
− Excitar como antigamente, não me excita
mais, é claro, mas se você perdesse esta nossa perna aqui, eu acho que não
conseguiria andar só com três.
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