Homens magros
Os olhos abertos de Serafim investigavam os silêncios da longa noite. Olhos parados, sem pestanejar, abertos até às lágrimas. Experimentou afastar-se das fartas carnes de Alzira e percebeu que o inverno finalmente havia chegado. Então era inverno, como já sabiam suas pernas finas e treinadas. Mesmo assim manteve-se distante, disposto ao sofrimento. Precisava agora ter certeza de que sobreviveria sem o calor da mulher. Era o que vinha pensando ultimamente porque a vida com tantas manchas escuras a contornar ia-se tornando uma tormenta, sem muito prazer. E o passado não se deixava apagar. Por mais que esfregasse, não desaparecia, cicatriz que se carrega para sempre.
A seu lado, solta redonda em todo o peso, Alzira ressonava as profundezas
da vida. Serafim, por um instante, pensou tê-la ouvido falar: aquela respiração
forte e sonora. Apurou seu ouvido no vazio, o nada. Com que sonhos dormia
Alzira para que dormisse tão completamente? Esperou mais algum tempo, inteiro
aberto, em silêncio, o pigarro a custo engolido. Ergueu a cabeça pouco mais de
meio palmo, investigativo. Ela não se manifestava como um ser que vive, um
ente. Era ali apenas um volume, peso e altura com a respiração forte e
sonora.
A ele somente competiam as asperezas da insônia. Somente a ele, que um
dia pensara no passado como escura mancha que esponja e água fazem desaparecer.
Foi o que disse para Alzira, naquela noite, à beira de uma grande paixão. Teu
passado não me interessa. A vida para nós dois começa agora, neste quarto de
bordel. Visivelmente abraçados. Desde então o sono de Alzira veio engordando,
tranqüilo e pesado, protegido por um homem a quem podia dedicar exclusividade.
Recostou novamente a cabeça no travesseiro, pedra sobre pedra, enquanto
as pernas magras, pressentindo cãibras, tratavam de se achegar às coxas mornas
e macias. Calor é vida, concluiu sem muita certeza. Um café bem quente na
cozinha, chegou a pensar, o corpo colado ao da mulher. Desistiu, contudo, ao
lembrar-se de que o café é excitante. Talvez não sonhasse com nada, ela, o
corpo apaziguado finalmente, mortas as
labaredas que a tornaram a rainha da zona. Era agora uma senhora na cama com
seu marido. Meses depois daquela longínqua primeira noite, de casa montada,
casados, Alzira confessou-lhe que nunca perdera a esperança: um dia havia de
aparecer-lhe um príncipe, alguém que a tirasse dali. Viveria então tempos de
paz e sossego, o passado escondido por trás de grossas nuvens, aqueles flocos
brancos.
O ódio chegou aos poucos e tão sutilmente que nem foi percebido nos
primeiros anos.
Uma noite, à frente da televisão, depois do jantar, de repente Alzira
suspirou. Só então Serafim notou que a esposa tornara-se consumidora compulsiva
de chocolate. Aquele suspiro ocupou-lhe a mente durante algumas horas. No dia
seguinte ela suspirou novamente e Serafim descobriu que ela tinha conta na
bombonière da avenida, onde se abastecia diariamente. A raiva durou pouco mais
de uma semana. Acenou com viagens, cinema, passeios. Ela não se animava,
prisioneira de uma saudade opressiva que não poderia confessar. Serafim
acostumou-se aos suspiros, como era melhor para a paz doméstica.
Sem ocupação para seus olhos noturnos ou para os membros encolhidos sobre
a cama, sem espaço onde vaguear, confinado no escuro, ocupava o tempo, cada
centímetro daquelas noites sem fim, com a lembrança de gestos antigos e
desbotados. Sentiu-se novamente tentado a dispensar o calor de Alzira quando se
lembrou de um domingo em que assistiam a um programa de auditório. No fundo do
palco, sem nunca parar, um bando de garotas de sorriso, gestos e roupa
idênticos faziam evoluções que tentavam desesperadamente parecer sensuais.
Serafim comentou a falta de jeito das meninas, o grotesco daquelas máscaras
infantis imitando um quadro erótico. Eram tantas que só existiam como
repetições especulares: individualidades anuladas.
-
Você não acha?
Alzira não suspirou nem respondeu. Ela não existia mais para o que se
passava em redor. Seus olhos tristes tinham-se apagado para a televisão, para o
marido, tinham abandonado a sala mal iluminada e viajavam por outros tempos.
Por onde?, Serafim perguntou.
Uma infinidade de vezes Serafim perguntou por onde andavam os pensamentos
da mulher. No início ela se trancava por dentro, ninguém com ela no quarto
escuro da memória. No início. Expulso assim, o marido, deixou que lhe medrasse
o rancor. Sentiu-se ridículo com tamanha insistência, então calou. Para sempre,
ele pensava, uns restos de sangue levando-lhe calor até a cabeça. Aquelas
ausências de Alzira tornavam-se freqüentes. O rancor de Serafim tornava-se cada
vez maior.
Pairava no céu, todos os dias, um corvo de asas imensas, que voava em
círculos lentos, muito lentos, sem deixar espaço para o ar.
Cansada de seus próprios silêncios, um dia Alzira falou ao fim de um
imenso bocejo:
-
Sempre tive preferência por homens magros.
E o que fora uma afirmação distraída, entre um fim de almoço e a sesta
regulamentar, tornou-se um hábito quase diário. Alzira melhorava de humor,
tornando-se faladeira, desbocada, risonha. Tudo o que durante muito tempo
Serafim vinha pedindo a Deus.
Por homens magros. Não tinha queixas contra o presente de Alzira. Talvez
um pouco de exagero em sua alegria, mas respeitada pelo que lhes restava de
família e admirada na vizinhança, onde se tornara conselheira. Poderia ser
feliz, não fosse a naturalidade com que ela agora dera para comentar a vida em
que a tinha encontrado um dia.
Quantos?, Serafim queria saber, mas a noite não respondia. Inventava
cenas em que Alzira, a rainha, dançava nua sobre a mesa coberta de garrafas e
cercada de admiradores. Depois exigia
que fizessem fila à porta de seu quarto. Na frente os magros, ordenava. Os
pensamentos voejavam trêmulos pelo escuro do quarto como morcegos silenciosos.
Era impossível apagar o passado. O marido sentia-se mergulhado nas dobras da
gordura da esposa, quase sufocado, como ficara chorando muitas vezes, nestes
últimos tempos, a cabeça entre os seios maternais de Alzira. Nem as lágrimas
removiam aquelas manchas.
Virou-se de costas para a mulher, com todo o cuidado, esperou um momento
para ver se ela se mexia, então sentou-se na cama, as pernas penduradas no
inverno. Quantos? Todas as noites dos anos todos, aquela preferência por homens
magros. Suas carícias, suas babas, as gosmas com que a conspurcavam.
Levantou-se tremendo e, sem acender a luz, foi para a cozinha. Precisava de um
café bem quente, alguma coisa que o invadisse devolvendo-lhe o calor. O passado
não existe, afirmava insistente e com raiva. É ficção que a gente se inventa
pra dar ao presente a ilusão de realidade. Não existe, repetia ainda no
corredor, não existe. E avançava resoluto pelo oco da noite.
Quando, de manhã, chegaram os policiais,
encontraram Serafim vestido e a mala pronta. Constou do boletim de ocorrência
que o réu aparentava extraordinária tranqüilidade.
*
Olá caro amigo. Que bom ler você. Como sempre é um deleite.
ResponderExcluirDesejo-lhe muita saúde física porque a mental está ótima. Abraços.
sua fiel leitora. Veruska ( Vera Lúcia)