sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Conto extraído do livro "Acoleira no pescoço".

 Um dia apagado


Vagaroso e barulhento, sobe o portão de aço. Enquanto isso, preso ao banco pelo cinto de segurança, e tendo botado o motor a funcionar, Arlindo tamborila sua impaciência no volante. Detesta sair de casa assim atrasado. Fica tudo parecendo mais lento, o tempo escorrendo em caldo grosso e quente, como ali atrás o portão, e a camada fina de suor que lhe umedece o corpo mancha a roupa, cheira mal. Horrível a sensação de sujeira, quando tem ainda um expediente inteiro pela frente. E o pior de tudo será enfrentar aquelas dezenas de olhos alegres de tanta malícia e acusação por tê-los deixado muito tempo de pé parados, esperando do lado de fora.
A claridade da manhã deveria subir das lajotas de cerâmica, seu brilho, como todos os dias, ao som do motor e das roldanas em suas canaletas. Mas não sobe. A claridade azul da manhã está escurecida ou suja e Arlindo tamborila sua impaciência no volante, não pode, portanto, perceber a diferença.  Sua impaciência empana-lhe a visão. Não fosse a posse das chaves, pouca importância chegar vinte minutos, meia hora atrasado. Deveria ter-se recusado à função, poderia, mas teria sido refugar uma parcela de poder e a vaidade foi quem decidiu.
E que dizer, então, do cinto de segurança atravessado no peito, amassando a lapela do paletó?
São tantos os desconfortos, pensa Arlindo ao tamborilar sua impaciência no volante. Mas só repete o pensamento fragmentado e abstrato, sem um suporte empírico, apenas como constatação vaga de sua forma de existência. Submerso em água, mergulhador, sem o poder de isolar-se dela: mero figurante ou quase objeto em seu meio, o ambiente desconfortável.
Arlindo não percebe logo o fim do ruído. Está mais concentrado no desconforto de estar dentro de si, tão mergulhado no ambiente como se não existisse. Então o silêncio salta para o interior de seus ouvidos e ele se assusta alegre. Engata a marcha a ré, finalmente, mas não sai do lugar. O retrovisor está coberto de escuro: o dia apagado. Na frente da garagem, fechando-lhe qualquer possibilidade de saída, aparece aquela mancha imensa, uma parede: o caminhão mudo em si, suspenso por pneus gigantescos, tão enormes e parados que parecem ter nascido e crescido  ali naquele lugar.
Enquanto espera que o portão da garagem seja desimpedido, Arlindo aperta as duas mãos no volante, retesa os braços, conta lentamente até cinco e solta. Repete a pressão, estica novamente os braços e solta. Respira fundo para então retesar o corpo todo. Solta o ar e os músculos ao mesmo tempo. Começa a sentir-se melhor: uma tontura leve na testa, acima dos olhos, uma volúpia, os músculos frouxos, finalmente aliviados.
Mas então, como é que é?, ele pensa olhando para trás, descaradamente corajoso. Observa ainda pouco atento o caminhão embrulhado em sua lona, preso pelo correame. Sinal de vida nenhum. Então abre a porta e solta-se por sua vez de suas ataduras para conferir de perto a situação. Aproxima-se sem muita cautela, examinando os detalhes. Percorre toda volta da carreta. Está moribundamente fria, vestígio nenhum de que aquilo tudo alguma vez já fora capaz de algum movimento. Pára na frente do caminhão, desafiador como se parasse de pernas abertas, e anota a chapa. Percebe então o grotesco da ironia: um caminhão parado sobre si mesmo. Guarda o papel no bolso e encara o relógio de pulso uma primeira vez. Volta a examinar o mostrador porque não consegue mais reter a hora. O tempo já está sem nome, é apenas uma agonia. 
O caminhão jaz como as coisas que nascem da eternidade: inteiramente só.
Na entrada de volta à garagem, Arlindo grita o nome da mulher, que mostra a cabeça na porta. O grito fica pendurado por pouco tempo nas paredes cobertas de escuro, antes de escorrer para o ralo. Ele tira do bolso o papel com a chapa anotada e então percebe que não sabe para que servem aqueles números, tão inúteis como os do relógio. Marta e seus olhos escondidos no vão estreito da porta nada entendem do alvoroço: o suor da camisa azul, quando ele joga o paletó sobre o banco do carro, a bola de papel que ele arremessa na calçada como uma vingança pesada.
O marido se aproxima de Marta com as mãos vazias espalmadas para perguntar e agora, o que é que eu faço?, mas ela também não sabe o que ele deve fazer, pois nem sabe qual a causa de todo este alvoroço. Arlindo aponta o caminhão dormente com o queixo e a boca por trás de lábios apertados, e o espanto de Marta se resume a bater a porta com violência contra os olhos suplicantes do marido, depois de dizer que você é mesmo muito atrapalhado. 
Arlindo desaperta o nó da gravata e os lábios, um pouco sôfrego, porque acha o mundo um lugar apertado, com escassez de espaço. Desse mesmo jeito caminha até a calçada como se estivesse com pressa, então solta um grito para cima, na direção do céu, na esperança de que uma voz saia por fim das nuvens, grandiosa, medonha, capaz de explicar o mundo. Não espera por muito tempo, pois sua esperança já nasce como coisa morta, bastante desgastada. Encaminha-se lento e desconfiado até a frente da carreta, num movimento cheio de sestro, de cálculos. Olham-se mais uma vez, de longe, e há um início de entendimento.
A rua está quieta, com seu ar de feriado, e a ausência de testemunhas ajuda a investigação de Arlindo, minuciosa e esperta. 
Aproxima-se do caminhão e sobe no estribo, mas isso é apenas um exercício para os músculos entorpecidos, sem qualquer significação além de si mesmo, de sua condição de exercício. Mesmo assim contempla-se admirado no vidro da janela. É um lugar onde jamais imaginaria ver-se refletido, e o imprevisto do fato parece mostrar-lhe quão imponderáveis são os passos da existência humana. Tudo que existe é feito de sustos, feixes de sustos. Descobre incrédulo, então, as marcas recentes de sua própria tentativa de choro, agora secas  em seus leitos, e decide que a brisa é suficiente para apagar qualquer vestígio do passado.

Arlindo arregaça as mangas da camisa e tenta forçar a porta do caminhão, agora que já são velhos conhecidos. O trinco cede com um pequeno estalido, e ele invade a boléia, sentando-se em seu novo poder. Ao primeiro ronco do motor, os dois estremecem felizes e rumam para o sul. 

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