* O conto a seguir faz parte do livro "A coleira no pescoço", publicado pela Bertrand Brasil.
Pedro
Cada
instante, Teseu, é precioso. A culpada
Sou eu que
ao filho casto e tão respeita
Ousei fixar
um olhar de incestuoso impudor
(Fedra)
Preciso sair deste inferno. Não suporto mais o castigo das noites de
insônia a imaginar sua respiração no quarto ao lado, uma parede apenas no
caminho de meus desejos. Não posso continuar fazendo amor com a mãe usando a
filha como fantasia. Ainda hoje preciso sumir. Agora, antes que a Joana volte
do clube, antes que tenha de enfrentá-la com uma explicação impossível. Um
bilhete apenas, e ponto final.
Ela saiu tropeçando em raivas, minha enteada, seus olhos grandes e doces
num rosto desconhecido-irado. Minha mãe vai saber de tudo, ela me jogou da
porta, num grito como um jab de
direita, antes de bater a porta: um cruzado de esquerda. Os dois golpes me
atingiram e me deixaram sem reação. Sua voz estava tão irreconhecível quanto
seu rosto, sem as doçuras do convívio, aquele mel que me fluía suave pelos
ouvidos como veneno que antes de matar inunda os sentidos e concede a visão do
paraíso -
gozo inefável. Sua voz, seu olhar, os peitos empinados e pequenos, suas coxas
macias e quentes, seus lábios carnudos, fruta madura e sumarenta, tudo isso me
habitou nestes últimos três anos, dia e noite, como o prazer de uma morte. Era
impossível que Anita ainda não tivesse pelo menos pressentido o desejo que aos
poucos acabava comigo. Tanta ingenuidade não existe neste mundo, eu pensava.
Ao levantar-se da cadeira, deu dois passos para trás quase derrubando a
estante de CDs. Seus lábios tremiam e os olhos marejavam. Foi o momento em que
percebi a falsidade dos prenúncios que vinha observando desde a hora do almoço:
o destino parecia a meu favor. Eu percebi, então, entre assustado e curioso
como numa vertigem, o tamanho de sua indignação. Tinha suas mãos nas minhas e
suava por causa disso. O tesão me incendiava os olhos, minha saliva era uma
lava grossa e quente. E ela finalmente entendeu que as carícias recebidas não
eram paternais. Um momento antes eu ainda acreditava na possibilidade daquele
amor proibido. Até o momento em que ela arrancou bruscamente suas mãos das
minhas.
A voz que eu ouvia não era minha, era pálida, era como a voz da televisão
na sala ao lado. Meus lábios se moviam à revelia de minha vontade. A cena era
de um sonho difícil e surreal. Eu sabia o que estava fazendo, mas não
controlava qualquer ação. Desde o instante em que tomei suas mãos entre as
minhas e ela sorrindo permitiu que assim ficassem, perdi completamente o
comando de mim, dessa loucura que durante tanto tempo eu vinha evitando. A
tarde juntos, eu acabava de dizer, e ela perguntou por quê. E me encarava de
olhos corajosos, o que entendi errado. Ora, por quê. E então você não percebe?
Percebe o quê?, ela voltou a perguntar, suas mãos quentes irrigadas pelo suor
incontrolável de meu tesão. Que eu quero fazer amor com você, eu disse
baixinho, como se uma coisa assim proibida pudesse marcar os móveis, as
paredes, pudesse criar um corpo com asas e evadir-se pelas janelas. Suas
pestanas enrugadas me fitaram um momento sem compreender nada, obtusas, e então
suas duas mãos fugiram assustadas.
Tanta coisa para se fazer num domingo à tarde melhor do que jogar vôlei,
minha filha. Foi tão primeira essa vez que se declarava entre nós qualquer
parentesco que a meus ouvidos soou como mentira. Um som falso. Mesmo assim,
Anita, que nestes três anos vinha evitando qualquer aproximação comigo,
entregou-me docilmente suas mãos. Ela esteve muito perto de ceder. Tenho
certeza disso. Senti que se agradava das carícias, tensa, gotículas de suor na
testa e no buço. Avancei rude, uma fome antiga
me guiando os passos. Foi a minha perdição, porque então vi a sombra de
seu pai encarando-me do fundo de seus olhos grandes e assustados. Entre nós,
quase sempre, aquele anjo da guarda que o câncer comeu, mas cuja lembrança está
em cada canto desta casa, afrontando-me com sua santidade.
Anita, em geral, usa roupas fechadas e escuras, escondendo o corpo. Não
sai da igreja e se comporta como uma noviça. E dizem que estas são as mais
quentes. Nas tardes de calor, entretanto, ou quando resolve lavar o quintal,
finge que não me vê. Talvez não me veja mesmo. Veste um shortinho muito curto e
apertado, metade da barriga aparecendo abaixo do nó nas fraldas da blusa. Uma
vez só que eu pudesse enfiar o dedo naquele umbigo orgulhoso e despudorado, uma
vez só e morreria realizado. Meu Deus do céu, são as tardes em que faço amor
sozinho.
Um ciúme assim mórbido e intenso não acreditava que um dia pudesse
sentir. O domingo quente se desmanchava na frente da televisão quando ela
passou e se despediu displicente. Desde cedo eu estivera certo de que o destino
estava a meu favor. Anita não tinha aonde ir. Foi do que se queixou na volta da
missa. Mais tarde, pouco antes do almoço, Joana me perguntou se eu não me
incomodaria de ela passar a tarde com suas amigas jogando não entendi bem o que
no clube. Sábado à noite os empregados costumam ser dispensados. Eu tinha o
jogo do Brasil a que assistir. Boa razão para estar em casa. Tudo armado e ela
parecia não entender.
Aonde vai, vestida desta maneira? Usava um agasalho esportivo e tênis.
Ela parou surpresa com essa intromissão assim tão paterna. Coisa fora de meu
feitio. E demorou algum tempo surpresa, resposta nenhuma acudindo-lhe. Foi o
tempo em que me levantei para cercá-la, conversando amistoso, chegando ao ponto
de chamá-la de filha. De minha filha. Jogar vôlei com os amigos, ela disse finalmente,
provocando sem saber o ciúme que me decidiu a não retardar aquela abordagem.
O jogo ainda não tinha começado.
*
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