sexta-feira, 25 de julho de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

* O conto a seguir faz parte do livro "A coleira no pescoço", publicado pela Bertrand Brasil.
Pedro
Cada instante, Teseu, é precioso. A culpada
Sou eu que ao filho casto e tão respeita
Ousei fixar um olhar de incestuoso impudor
                                                          (Fedra)
Preciso sair deste inferno. Não suporto mais o castigo das noites de insônia a imaginar sua respiração no quarto ao lado, uma parede apenas no caminho de meus desejos. Não posso continuar fazendo amor com a mãe usando a filha como fantasia. Ainda hoje preciso sumir. Agora, antes que a Joana volte do clube, antes que tenha de enfrentá-la com uma explicação impossível. Um bilhete apenas, e ponto final.

Ela saiu tropeçando em raivas, minha enteada, seus olhos grandes e doces num rosto desconhecido-irado. Minha mãe vai saber de tudo, ela me jogou da porta, num grito como um jab de direita, antes de bater a porta: um cruzado de esquerda. Os dois golpes me atingiram e me deixaram sem reação. Sua voz estava tão irreconhecível quanto seu rosto, sem as doçuras do convívio, aquele mel que me fluía suave pelos ouvidos como veneno que antes de matar inunda os sentidos e concede a visão do paraíso - gozo inefável. Sua voz, seu olhar, os peitos empinados e pequenos, suas coxas macias e quentes, seus lábios carnudos, fruta madura e sumarenta, tudo isso me habitou nestes últimos três anos, dia e noite, como o prazer de uma morte. Era impossível que Anita ainda não tivesse pelo menos pressentido o desejo que aos poucos acabava comigo. Tanta ingenuidade não existe neste mundo, eu pensava.
Ao levantar-se da cadeira, deu dois passos para trás quase derrubando a estante de CDs. Seus lábios tremiam e os olhos marejavam. Foi o momento em que percebi a falsidade dos prenúncios que vinha observando desde a hora do almoço: o destino parecia a meu favor. Eu percebi, então, entre assustado e curioso como numa vertigem, o tamanho de sua indignação. Tinha suas mãos nas minhas e suava por causa disso. O tesão me incendiava os olhos, minha saliva era uma lava grossa e quente. E ela finalmente entendeu que as carícias recebidas não eram paternais. Um momento antes eu ainda acreditava na possibilidade daquele amor proibido. Até o momento em que ela arrancou bruscamente suas mãos das minhas.
A voz que eu ouvia não era minha, era pálida, era como a voz da televisão na sala ao lado. Meus lábios se moviam à revelia de minha vontade. A cena era de um sonho difícil e surreal. Eu sabia o que estava fazendo, mas não controlava qualquer ação. Desde o instante em que tomei suas mãos entre as minhas e ela sorrindo permitiu que assim ficassem, perdi completamente o comando de mim, dessa loucura que durante tanto tempo eu vinha evitando. A tarde juntos, eu acabava de dizer, e ela perguntou por quê. E me encarava de olhos corajosos, o que entendi errado. Ora, por quê. E então você não percebe? Percebe o quê?, ela voltou a perguntar, suas mãos quentes irrigadas pelo suor incontrolável de meu tesão. Que eu quero fazer amor com você, eu disse baixinho, como se uma coisa assim proibida pudesse marcar os móveis, as paredes, pudesse criar um corpo com asas e evadir-se pelas janelas. Suas pestanas enrugadas me fitaram um momento sem compreender nada, obtusas, e então suas duas mãos fugiram assustadas.
Tanta coisa para se fazer num domingo à tarde melhor do que jogar vôlei, minha filha. Foi tão primeira essa vez que se declarava entre nós qualquer parentesco que a meus ouvidos soou como mentira. Um som falso. Mesmo assim, Anita, que nestes três anos vinha evitando qualquer aproximação comigo, entregou-me docilmente suas mãos. Ela esteve muito perto de ceder. Tenho certeza disso. Senti que se agradava das carícias, tensa, gotículas de suor na testa e no buço. Avancei rude, uma fome antiga   me guiando os passos. Foi a minha perdição, porque então vi a sombra de seu pai encarando-me do fundo de seus olhos grandes e assustados. Entre nós, quase sempre, aquele anjo da guarda que o câncer comeu, mas cuja lembrança está em cada canto desta casa, afrontando-me com sua santidade.
Anita, em geral, usa roupas fechadas e escuras, escondendo o corpo. Não sai da igreja e se comporta como uma noviça. E dizem que estas são as mais quentes. Nas tardes de calor, entretanto, ou quando resolve lavar o quintal, finge que não me vê. Talvez não me veja mesmo. Veste um shortinho muito curto e apertado, metade da barriga aparecendo abaixo do nó nas fraldas da blusa. Uma vez só que eu pudesse enfiar o dedo naquele umbigo orgulhoso e despudorado, uma vez só e morreria realizado. Meu Deus do céu, são as tardes em que faço amor sozinho.
Um ciúme assim mórbido e intenso não acreditava que um dia pudesse sentir. O domingo quente se desmanchava na frente da televisão quando ela passou e se despediu displicente. Desde cedo eu estivera certo de que o destino estava a meu favor. Anita não tinha aonde ir. Foi do que se queixou na volta da missa. Mais tarde, pouco antes do almoço, Joana me perguntou se eu não me incomodaria de ela passar a tarde com suas amigas jogando não entendi bem o que no clube. Sábado à noite os empregados costumam ser dispensados. Eu tinha o jogo do Brasil a que assistir. Boa razão para estar em casa. Tudo armado e ela parecia não entender.
Aonde vai, vestida desta maneira? Usava um agasalho esportivo e tênis. Ela parou surpresa com essa intromissão assim tão paterna. Coisa fora de meu feitio. E demorou algum tempo surpresa, resposta nenhuma acudindo-lhe. Foi o tempo em que me levantei para cercá-la, conversando amistoso, chegando ao ponto de chamá-la de filha. De minha filha. Jogar vôlei com os amigos, ela disse finalmente, provocando sem saber o ciúme que me decidiu a não retardar aquela abordagem. 
O jogo ainda não tinha começado.
                                                          *

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