O professor de filosofia, Matheus Arcaro, estreia na literatura com o livro de contos VIOLETA VELHA E OUTRAS FLORES, que tive o prazer de prefaciar.
O lançamento será no próximo dia 16, às 19h30, no Centro Cultural Palace, em Ribeirão Preto.
Antecipo para vocês, com a devida autorização do autor, um dos contos do livro.
O lançamento será no próximo dia 16, às 19h30, no Centro Cultural Palace, em Ribeirão Preto.
Antecipo para vocês, com a devida autorização do autor, um dos contos do livro.
A
fúria sem som
Cadê
a Tereza? Faz tempo que ela não me dá banho. A mão da Tereza era leve, parecia
o beija-flor que cheirava as flores da mamãe. Ela me deixava tão cheiroso que
um dia quase o beija-flor veio me beijar. Ele não veio, mas a Tereza me beijou.
Ela me beijava e abraçava e depois beijava de novo. E eu desenhava o cheiro
dela enquanto ela passava a mão no meu rosto, temos que fazer essa barba hoje,
Benjamim. Tá igual espinho. Espinho branco, onde já se viu? De manhã, à tarde e
à noite ela me dava um monte de balinhas coloridas, sempre iguais. O gosto não
era muito bom, por isso eu não queria comer. Mas ela dizia que era pra dar
força pra minha cabeça, aí eu engolia sem
mastigar. A Tereza cuidava de mim
como se eu fosse um filho. Mulher foi
feita pra ter filhos, ouvi vovó dizendo pra mamãe. É obrigado igual a ir na
missa de domingo, vó? Ela só olhou pra mamãe espremendo os olhos, a boca feito
um arco curvado pra baixo. Vovó falava bastante, mas agora eu não ouço mais a
voz dela. Ela foi ficar junto com o vovô. Não sei como, mas lá de cima ela ouve
tudo o que eu falo. Você acha que a camiseta vai sair por mágica, Benjamim?
Levanta o braço direito. Não estou levantando direito, dona Elizabeth? O outro
braço. Vamos, antes que a sua mãe chegue. Mamãe foi no circo com o Willian? Seu
irmão está trabalhando, como faz todos os dias. Sua mãe também. Mamãe trabalha
no circo? Bem que ela podia pedir emprestado o sapato do palhaço. Depois eu
devolvia, era só pra mostrar pro Willian que o sapato não combina comigo. Mamãe
deve ter ido conversar com o mágico pra ele fazer o papai reaparecer. Mas como
será que ele entrou na cartola? Cadê a Tereza, dona Elizabeth? Mudou de cidade
faz mais de três meses. Pra onde ela foi? Pra longe. Onde fica o longe? Serventia de mulher que não tem filho é
limpar chão mesmo. A Tereza não serve só para limpar chão, eu queria ter
gritado pra vovó. Mas meu silêncio alto chegou aos ouvidos da Tereza: ela
sorriu pra mim com os olhos. Vamos tirar a bermuda, Benjamim. Será que a
dona Elizabeth vai fazer aquilo de novo? Que bermuda imunda! Você rolou na
terra a tarde toda? Fiz uma casa pro Dentuço perto das flores da mamãe. A
senhora tem mais neve na cabeça do que eu. Está nevando lá fora? Papai Noel
deve estar chegando. Outra coisa: a
Tereza trata esse homem de um metro e oitenta como se fosse uma criança de sete
anos. Assim ele vai continuar babando pelos cantos e rabiscando as paredes da
casa até morrer. Um metro e oitenta é mais ou menos que a altura de um avião?
Preciso mostrar pro Willian que eu sou grande e forte como o papai. Quem sabe
ele para de dizer que eu tenho que ir pro hospital. Hospital é lugar de gente
doente, eu fui lá ver a vovó antes do vovô puxar ela pra perto das nuvens. É
tudo branco e a comida vem numa tigela de plástico rachado. Vovó não devia
gostar daquela comida, por isso estava tão magra. Mamãe disse que ela não
conseguia comer porque estava pagando não sei o quê, pecado, ruindade, não
lembro. Como vou tirar sua cueca se você está com quase cem quilos? Me
ajuda, Benjamim. Não adianta chorar, afasta os pés. Não me force a repetir o
que fiz ontem. Passei a mão nas minhas pernas, das listras vermelhas ainda
saltava uma coisa doída. A cinta que ela usou estava pendurada junto com a
toalha. Alguém mexeu nas minhas joias, Carmen.
Só pode ter sido esta negra fedida. Tereza era tão cheirosa. Eu desenhava o
cheiro dela. Você tem que tomar uma atitude, filha. Fica quieto, senão vou
te machucar com a lâmina. Levanta a cabeça, você tem muito pelo aqui no
pescoço. Pelo é pra proteger do frio, por isso o Dentuço nunca fica resfriado.
Ele é muito velho, só tem pelo branco. Eu tenho mais pelo preto que pelo
branco. A vovó usava uma mágica pra sumir com os pelos brancos da cabeça. Mas
não durava muito tempo, não. Logo os brancos iam empurrando os pretos e ela
tinha que fazer a mágica de novo. Tá ardendo meu olho, dona Elizabeth. Como
você é chorão! O que você tem no meio das pernas? Ela sabe o que tenho no meio
das pernas. Enfia a cabeça embaixo d’água, Benjamim. Assim, rapaz! Mas eu não consigo
respirar, preciso de uma máscara de mergulhar igual uma que vi na televisão. Eu
já assisti um monte de coisa legal na televisão. A senhora tem televisão, dona
Elizabeth? Eu não peguei joia nenhuma. A
senhora me conhece desde que nasceu, dona Carmen, e sabe muito bem que eu sou
direita. Eu nem tenho pescoço pra usar essas coisas. Por que você acha que essa
preta nunca teve filhos, Carmen? Que homem ia sujar o pau com ela? A senhora
sempre procurando um jeito pra acabar comigo, né, dona Lúcia?! Mas o seu
Horácio, que Deus o tenha, não achava a nega aqui fedida. Lave a boca pra falar
do meu marido, velha encardida. Ele me procurava quase toda noite no quartinho,
a senhora sabe muito bem. Leva o seu irmão lá pra fora, Willian. A Tereza
também dava banho no vovô, Willian? Levanta o braço. Deixa eu esfregar
aqui, vira. Vira mais. Benjamim, você tomou os remédios da tarde? Cadê a Tereza? Cadê a Tereza? A Tereza
contava história enquanto me dava banho. Ela disse uma vez que conheceu o mundo
inteiro num dia só. Ela ia de cidade em cidade voando de balão e fotografava
tudo lá de cima. Ela me mostrou as fotos no computador do Willian. A senhora já
viu as fotos? Mas demorou muito pra ela me mostrar porque ele não queria
emprestar o computador. Disse que o computador era pra trabalho, não pra essas
coisas que não servem pra nada. Como a gente mede a serventia de uma coisa? A Tereza não sabe roubar nada não, Willian.
Eu sempre deixei meus bonecos em cima da cama, no chão, no banheiro e eles
sempre estavam lá quietinhos quando eu voltava. Às vezes ela punha em cima do
armário, é verdade. Mas nunca sumiu nenhum. Você está me molhando inteira,
Benjamim, olha só a minha blusa. Desculpa. Vou estender a blusa aqui no box.
Ontem a senhora estendeu na maçaneta, dona Elizabeth, lembra? Ou foi antes de
ontem? Eu não quero que a Tereza vá
embora, mamãe. Você tem que falar pra vovó que ela não fez nada. Ela cuida de
mim como se eu fosse o filho dela. Como um neto, Benjamim. Ela cuida de você
como um neto. Dona Elizabeth, a calça da senhora também molhou? Você já consegue entender como é a sua vó
Lúcia. Quando ela põe uma coisa na cabeça não há quem tire, filho. Vem, eu vou
te dar seu remedinho da noite. Mas a Tereza vai sair assim nesse escuro, mãe? E
se o homem do saco pegar ela? E se a menina do Exorcista vomitar verde na cara
dela como fez com o padre? Ela vai pegar doença. A Tereza não pegava assim
em mim. Eu não pegava assim na Tereza. O que é isso que acontece quando a dona
Elizabeth pega em mim? Eu não gosto do que acontece. Não posso gostar. Por que a senhora não é tão branca como a
vovó, mamãe? Que pergunta! As pessoas
nascem diferentes, Benjamim. Veja,
você não é igual ao seu irmão. Como eu sou, mãe? Você é um homem bom, muito
especial. Um anjo de Deus. Dona Elizabeth, não gosto de fazer isso. Eu
sinto um negócio estranho, parece que alguma coisa aqui dentro cresce, cresce,
cresce até explodir. Tenho medo. Ai, Benjamim, cala a boca. É só você ficar
paradinho aí na parede que eu faço o resto. Mas eu não consigo ficar paradinho,
o azulejo está frio. Põe uma toalha nas costas e outra na boca. Benjamim, esta é a Beth. Ela vai cuidar de
você como a Tereza cuidava. A partir de agora você tem que obedecer a Beth,
ouviu bem? Fecha a tampa do vaso e senta aí.
Isso. Mas a senhora é muito pesada pra sentar no meu colo. Vai. Bem-ja-mim! Bem-ja-mim! Já! Já! Para, dona
Elizabeth, por favor. Para. Para! Endoidou de vez? Me dá essa lâmina, Benjamim.
O que você está fazendo, retardado? Ai! Para, débil mental. Demente filho da
puta. Socorro! A senhora nunca mais vai fazer isso comigo. Nunca mais. Nunca...
Dona Elizabeth! Dona Elizabeth, a senhora está me ouvindo? Tereza! Tereza, cadê
você?
Muito bom. Gostei.
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