O conto a seguir integra À sombra do cipreste, Livro do Ano do Prêmio Jabuti 2.000. Editado inicialmente pela Palavra Mágica, tem edição atual da Global Editora.
Guirlandas e
grinaldas: a brisa
Tinham acabado de finalmente sair, bando barulhento, os últimos moradores
da pensão. Sozinho à mesa, olhar morto, cansado, Rogério remexeu-se na cadeira
desconfortável, incomodado subitamente com o silêncio que, ainda há pouco,
enquanto espocavam alegremente gargalhadas e garrafas de champanha em sua
volta, tinha desejado com sofrida e feroz irritação. Saíram em grupos animados,
muito cristãos, para a missa do galo da
catedral, ali perto, pouco além das janelas altas da frente. De mãos dadas,
alguns, outros abraçados. Felizes: para bem longe rixas e antigas desavenças,
tomados, de repente, pela crença de que o milagre estava prestes a consumar-se.
Insistiram muito, os coitados, para que ele fosse também, demonstração de que
os perdoava. Mais que todos, insistiu Henrique, o pai das duas menininhas
loiras. Porque um dia, na porta de seu quarto: sua bichana balofa. Razão
qualquer, a da ofensa, provavelmente coisa à toa, de que nem se lembrava mais.
Claro que os perdoava, pois enfim, era aquele o dia. Depois da meia-noite o
mundo seria outro: fazia algum tempo que vinha notando os preparativos.
Vestígio nenhum, portanto, de vindita em
sua decisão de ficar: precisão inadiável, apenas, de observar sozinho o escoar
do tempo, de sozinho respirar a aragem daquela bondade prometida e tão
ansiosamente esperada nos últimos dias. À meia-noite ela desceria sobre a
cidade.
Nunca assim tão iluminada, a sala de jantar de dona Hermínia, nem tão
festiva, com as grinaldas de rosas pendentes do teto, e os ramalhetes de flores
guarnecendo os cantos. Ao chegar do banco, logo depois do meio-dia, Rogério
encontrou a mulher do sargento e uma das empregadas da casa esfolando-se nos aprestos da decoração. As
lanternas chinesas, parece que alguém as tinha trazido do Paraguai, um toque de
delicadeza imitando arandelas nas paredes. A guirlanda com ramos e frutos
naturais, presente de Rogério a dona Hermínia. As duas velhinhas do quarto da
frente, as irmãs Laura e Lóris, as únicas de quem nunca tivera a menor queixa,
entraram com o pinheirinho, os cordões de prata, as lâmpadas em forma de velas
e as bolas de vidro. A festa familiar e íntima de um povo sem raiz, sua despedida
e preparação.
A cidade, desde cedo, já dava
sinais evidentes de que qualquer coisa se aproximava. Nem todos sabiam, mas
todos esperavam. As pessoas se cruzavam sorrindo nas calçadas, corteses,
cumprimentando-se, alguns, e desejando-se felicidade. Gente a quem Rogério
nunca vira, nada mais que incógnitos transeuntes: a cidade, agora, uma imensa
família. Era de seus cumprimentos e sorrisos que Rogério tirava aquela certeza
de que não passaria da meia-noite. Umas ruas por onde passava todos os dias,
apenas no cumprimento de sua rotina, seu roteiro, o itinerário obrigatório, sem
nunca ter percebido nelas nada de especial, já estavam diferentes como
promessas inesperadas - grinaldas e guirlandas, fitas coloridas.
A vendedora da loja em que entrou, no caminho da pensão, abordou-o com um
sorriso fresco e úmido à guisa de crachá. Um sorriso encarnado. Ele até que
gostaria de ficar por ali, despercebido, escolhendo sem pressa, mas ela não o
largou, solícita. Quando é pra mim, você entende?... Difícil escolher qualquer
coisa assim pressionado: sexo, idade, ah, viúva!, condição social, tendência
estética, olhe, tenho uma sugestão que o senhor vai ver, impossível que não
agrade, etc. O interesse da moça pareceu-lhe tão verdadeiro que até seu sorriso
deixou de ser aquela obrigação da funcionária e conseguiu esconder-lhe o
cansaço que o excessivo movimento daquela manhã vinha causando. Talvez
estivesse enganado, quem sabe, mas pareceu-lhe que ela o espiava com certo ar
de cumplicidade: ela também esperava por
aquele momento. Então entregou-se a seus cuidados. Se fosse, entretanto, uma simpatia
profissional, tão-somente, que diabo, quanta falta de uma atenção, a vida toda,
profissional que fosse, não seria menos simpatia por isso. Já na pensão, depois
da entrega dos presentes de amigo secreto, copeiras e cozinheiras saíram também
em companhia dos pensionistas para a missa, uma cena que o comoveu: a comunhão.
Pena que tivessem deixado sobre as mesas uma paisagem tão repugnante, uma
paisagem que lhe fazia mal. As mesas todas atravancadas de restos, pratos e
talheres sujos, bagaços e cascas de frutas, garrafas vazias e pedaços de aves
lambuzados de gordura. Ah! aquilo o deixava bastante nauseado. Perdera o
controle, certo, comendo mais do que devia. E tinha exagerado um pouco, também,
no champanha. Mas seria a última vez, jurou convicto, porque seu coração fora
assaltado pela esperança de que no dia seguinte o mundo já seria outro, bem
diferente.
Em casa, na escola, na igreja, em toda parte havia sempre alguém
ensinando que um dia a bondade desceria de uma nuvem e se instalaria
definitivamente sobre a Terra, e que ela, então, emanando uma fragrância
divina, seria outra, bem diferente. Poucos eram aqueles que pressentiam o que
aconteceria. Seus pais não perdiam oportunidade de ameaçar: assim você nunca
vai sentir coisa nenhuma. Sua mãe, principalmente. Quando lhe perguntavam,
instantemente, ele dizia que sim, que sentia, mas depois ardia em dúvidas, sem
saber se era aquilo mesmo de que falavam. Algumas pessoas respeitáveis diziam
que desceria de uma nuvem, durante a missa do galo, outras, tão respeitáveis
quanto as primeiras, discordavam daquelas, afirmando que sairia do povo, do
meio do povo, em lugar e hora que ninguém
poderia esperar. O Teodoro foi a primeira pessoa a dizer-lhe: isso tudo
é uma puta besteira. Estavam sentados atrás do muro da escola e Rogério,
assustado, dizia que não, que do alto alguém tudo podia ver. Ele respondeu,
então, que tudo aquilo era uma puta besteira. Ouvindo tamanha blasfêmia,
Rogério sentiu uma morte amarga e antiga entrando por sua boca aberta. Medonha.
Passou um mês escondendo-se em cantos escuros, fugindo do olhar de adultos
conhecidos, seus olhos assombrados e febris: parecia que a marca do Teodoro estava
tatuada em seu rosto. Então, um dia, cansado de fugir, voltou a sentar-se atrás
do muro. Quando menos você estiver esperando, disse-lhe uma vez o padre, ele
desce. E Rogério gelou num desmaio de medo.
No início de dezembro, começou a desconfiar do quanto estivera errado ao
duvidar. Nos enfeites das ruas, nas vitrinas das lojas, no sorriso das pessoas,
em tudo as promessas pelas quais
ansiosamente viera esperando por quase toda sua vida.
Nem as janelas inteiramente abertas aliviavam-no do calor. Sentia-se mal,
pesado, sem o alívio que esperava do silêncio. E o suor, umedecendo-lhe o
cabelo na nuca, encharcando-lhe cada centímetro da roupa e do corpo, era um
desconforto difícil de suportar. Sentia-se desmanchar como rímel em rosto de
prostituta. Tivesse mais tempo, tomaria uma ducha fria. Mas faltavam menos de
dez minutos para que fosse o dia seguinte, e ele precisava trancar-se no
quarto, esperando a passagem. Um sal de fruta, que fosse, mas nem isso, e o
mundo era um veleiro com o mastro a oscilar. Os quartos todos trancados, no
escuro, sem fazer barulho nenhum, concentrados. Hóspedes e hospedeiros, todos na
catedral. Sozinho, naquele casarão, como jamais estivera, mas no coração a
brisa macia da esperança.
Abriu a porta e, trêmulo, sentindo uma ansiedade sem explicação, entrou
no quarto. O ambiente estava ainda mais abafado do que na sala de jantar e seu
desconforto só aumentou. Mas já se podiam ouvir os foguetes, que esparsamente
espocavam nos bairros mais afastados e, de terno, como estava, jogou-se na
cama. Logo depois o carrilhão da catedral anunciou a meia-noite e ele pôde
ouvir, como se ali, dentro do quarto, o foguetório do centro da cidade e os
fervorosos hinos de louvor entoados pelos fiéis. Os lençóis estavam encharcados:
em êxtase, não sentiu mais o corpo.
Escondidos pelo mato e pelo muro da escola, o Teodoro havia dito:
- Isso tudo é uma puta besteira.
Mas o que é então verdade?
Não chegou a sentir a brisa prometida: adormeceu antes.
Quando acordou, manhã a meio, ouvindo gargalhadas no quarto dos
estudantes, do outro lado da parede, pulou furioso da cama, por causa da roupa
amassada, do gosto amargo na boca, e por causa das gargalhadas. Não gostava do
olhar escarninho com que eles o encaravam. Tirou o paletó e a camisa, pegou uma
toalha de banho e saiu. Só então se lembrou das circunstâncias em que tinha
adormecido. O banheiro ficava no fim do corredor e antes de chegar à metade do
caminho quase foi atropelado pelas filhas
do Henrique, as duas na inauguração de seus patins barulhentos. E pareceu-lhe que arremeteram contra ele de propósito,
para assustá-lo, pois de longe ainda lhe faziam caretas, mostrando a língua e
gesticulando obscenidades com as duas mãos.
A pensão toda certamente já
havia desfilado pelo banheiro, o piso, àquela hora, alagado e sujo. Pior que
aquilo, entretanto, foi perceber que a família do sargento continuava urinando
fora do vaso, como era público e insolúvel. Não fosse a premência de um banho,
ali mesmo da porta ele teria voltado. O cheiro de amoníaco, o mesmo de sempre,
invadiu suas narinas, sufocante.
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