terça-feira, 25 de agosto de 2015

LABIRINTOS DE DENTRO

Estamos retomando nossa coluna de resenhas com um texto da escritora Vanessa Maranha sobre o
romance Bolero de Ravel, escrito na época de seu lançamento (2010).

Labirintos de dentro
                                         
Vanessa Maranha*

O Bolero de Ravel, novo livro de Menalton Braff, prolífico e versátil ficcionista laureado por importantes prêmios da literatura luso-brasileira, pode ser lido por pelo menos duas lentes. 
Pela refração da técnica literária, aperfeiçoa seu estilo elíptico, de livres associações e no fluxo da consciência;  trabalha com mão de artista a sintaxe, a linguagem, por vezes, levada às últimas consequências.
Seu desenvolvimento parece perseguir a cadência musical do “Bolero”, de Maurice Ravel, obra-prima que embute longos e obsessivos movimentos tonais intervalados por momentos de clímax. É a música provável radiografia rítmica do psiquismo de Adriano, personagem que ainda menino, desistiu da escola e da vida conforme os ditames da sociedade, com a anuência condescendente da mãe e a oposição insuficiente do pai e da irmã Laura, caracterizada por ele como vencedora desde sempre, a seguir os passos do pai advogado, aquele que em seu gabinete de “imperador” assinava seus despachos com suas “mãos gordas e peludas” e diariamente “beijava, sem nenhuma fome, a testa da mãe”.

Esses significantes, entre outros, que atravessam repetidamente a narrativa, vão construindo a história de Adriano, que aos trinta e cinco anos perde os pais, mortos num acidente, e se vê às voltas consigo próprio, desamparado e incompetente para a vida autônoma, confrontado com a irmã, já uma advogada casada, pragmática, o seu avesso, ambiguamente rancorosa, lhe cobrando ação e buscando providência para a partilha do que restou.

Pela lente psicanalítica, o personagem, que é, afinal, a própria história, se avulta porque passível de identificações, já que fixado num momento do desenvolvimento humano que lá na infância todos conhecemos. À primeira vista Adriano remete a uma figura autista, psicótica, para, na sequência, ir se mostrando um ser simbiótico que fantasia o estado fusional, inclusive com a irmã.
Na vertente freudiana, Adriano revive continuamente o ‘romance familiar’ edípico, refugiando-se, ainda criança no leito dos pais e, posteriormente, à brecha sugerida das dificuldades do casal parental, sequestrando a mãe para si, numa cumplicidade que os outros familiares não alcançavam e que pode ter sido a gênese do que adiante se revelará como degeneração psíquica,  entremeada por instantes de cortante lucidez, a torná-lo, também por sua fragilidade, um personagem comovente por quem o leitor torcerá relutante: dar-lhe o que ele anseia? Esperar dele alguma redenção?

A figura do pai encarnando a autoridade com suas mãos aracnídeas (tenazes repulsivas, indicam os significantes) acaba rasurada pela mãe, eclodindo na não realização do que o psicanalista francês Jacques Lacan chamou de ‘metáfora paterna’, ou seja, uma operação simbólica fundamental para a estruturação do ser humano,  o exercício de uma nomeação que permite à criança adquirir a sua identidade.

A função paterna seria a de representar a lei, como interdição, como corte simbólico da relação fusional com a mãe, dando origem ao ideal do eu na criança. Quando essa estruturação não se dá, conforme Lacan, “a foraclusão do nome-do-pai”,  eis a psicose, a reconstrução de uma realidade alucinatória e indelimitada, na qual o sujeito toma-se a si mesmo como objeto de amor, sem alteridade possível.

Em Adriano observa-se apenas o desejo de nada, o ensaio a um adeliano estado-semente, sem escolhas, anódino, sem conflitos, vontade de nunca mais sair da cama, “reduzido a ser, apenas estando”. Regido pelo princípio do prazer, num dualismo entre pulsões de vida e de morte, esta última evidente pelo caráter de compulsão à repetição permeando todo o livro, num compasso regressivo a algum estado anterior, sempre, a saber, com a meta de redução, constância ou eliminação de qualquer tensão, estado nirvânico embalado pelo nada e pela música: “aninhado vegetal, em rejeição passiva do que o mundo de fora me oferece”.
O autor acena perspectivas possíveis quando pinta momentos de afetividade e de algum desejo nessa vida mera (é verdade que um desejo retorcido, na fronteira com o perverso), mas, em termos simples, enquanto houver afeto, há um outro e, portanto, a esperança da não imersão na loucura do si mesmo.
Com maestria estética, Menalton Braff conduz seu leitor pelos labirintos de dentro de Adriano lançando nesgas de sol sobre esse sujeito desorientado que é produto de sua história, personagem tão real e atual, que diz não acreditar em vitória porque a morte a contradiz. Um exercício de olhar de fora e de dentro do abismo.


* Experiência em jornalismo diário , ensino de idiomas e Psicologia (psicoterapia, perícia e avaliação psicológica, RH). Exerce, paralelamente, atividades literárias.

Currículo Literário, Publicações e Premiações:

-Venceu o Prêmio Barueri de Literatura 2013/2014, com o livro de contos “Oitocentos e Sete Dias”, Editora Multifoco.

-Venceu o Prêmio Ufes de Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo

2013/2014, com o livro de contos “Quando não somos mais”.

- Foi uma das vencedoras do Prêmio OFF FLIP 2012 na categoria contos.

-Recebeu menção honrosa pelo conto “Ceias” no Prêmio Escriba de Literatura 2013

-Foi selecionada e participou da Oficina Literária da FLIP 2011, com o tema Crítica Literária.

-Foi selecionada e participou da Oficina Literária da FLIP 2010, com o tema Jornalismo Literário.

-Teve o texto “Klaus” selecionado para compor antologia do Prêmio SESC de Contos Machado de Assis -2010.

-Foi classificada, em 2009, para integrar coletânea do Projeto “Vamos Ler o Mundo”, no Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro-2009.

-Recebeu em 2007 menção honrosa no Concurso de Cuentos Infantiles Los Niños del Mercosur, Argentina, pelo texto “A Azeitona Fujona”.

- Em julho de 2004 venceu concurso de contos da Universidade Federal de São João Del Rei (MG), nesse mesmo ano, foi laureada pelo Prêmio FEUC de Literatura.

-Em 2005 teve um conto publicado no livro “+30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira”, org. por Luiz Ruffato e editado pela Record.

-Em 2003 publicou o livro de fragmentos Cadernos Vermelhos, Ribeirão Gráfica.

-Foi finalista no Prêmio Guimarães Rosa da Radio France Internationale, em 2001.

-Foi classificada em primeiro lugar no concurso de contos Realismo Fantástico ‘Locos de Atar’, na Argentina, em 1999.


-Em 1998 participou de cursos relativos à escrita escrita literária (Approaches to Shakespeare e Creative Writing) na Birkbeck College de Londres.


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