quinta-feira, 17 de setembro de 2015

"ONDE ANDARÁ DULCE VEIGA?"

Editora Agir relança a obra de Caio Fernando Abreu

                                          Resenha de Vanessa Maranha*

Um nome que na literatura brasileira é crucial na definição do que foram, em termos estéticos e ideológicos os anos 80 e 90 e do legado que nos deixaram é o do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu, morto em 1996, de AIDS.                                                   

Ficcionista de primeira grandeza, sobretudo como contista, onde aliás jaz, ainda pulsante, quase a totalidade de sua produção literária, Caio F. (assim assinava missivas aos amigos) continua marcando toda uma geração de escritores: de Santiago Nazarian a Joca Reiners Terron, são visíveis as rasuras em seus respectivos textos da influência direta ou indireta de Abreu, em suas temáticas urbanas, na recorrência quase obsessiva à cena gay (Nazarian), no lirismo derramado, as obsessões todas sublinhadas e que se mostram espaçadas, renitentes, ao longo de seus escritos, dialogando entre si.                         

No que se poderia chamar de um culto póstumo deflagrado nessa década em benefício da memória do escritor que em vida passou situações de verdadeira penúria financeira, sua obra foi relançada em grande estilo pela Editora Agir. Começou em 2011 com o tríptico “Caio 3 D” e depois trouxe aos leitores o romance “Onde Andará Dulce Veiga?” (que virou filme também em 2007 sob a direção do ribeirão-pretano Guilherme de Almeida Prado,  com Maitê Proença no papel principal).  

                                            
“Onde Andará Dulce Veiga?” foi gestado por 13 anos, escrito em 1 ano e publicado originalmente em 1990. Trata de um enigma, já exposto no título do livro. Narra em primeira pessoa a busca frenética de um jornalista maduro pelo paradeiro da grande cantora Dulce Veiga, desaparecida há 20 anos. O que ele não sabe é o quanto terá que descobrir sobre si mesmo antes de encontrá-la. Em meio a uma crise existencial, ele tornará às suas culpas e pavores como na lancinante, um tanto dark, cena em que, para sanar um erro do passado se sujeita a beijar uma boca de lábios purulentos e dentes roídos pelas cáries e sopesa, ecoando G.H. de Clarice Lispector: “é preciso ser capaz de amar meu nojo mais profundo para que ele me mostre o caminho onde eu serei inteiramente eu”.                                                                                                           
Nessa caça, atravessa o Brasil, do Rio de Janeiro à Floresta Amazônica, e fica cada vez mais obcecado pela personalidade intrigante da filha de Dulce, uma famosa roqueira de sexualidade e caráter ambíguos. Dulce Veiga comparece como uma figura que é quase um fantasma, parece uma projeção, no sentido psicanalítico, do personagem, de seu autor.                                                                                                 
O pano de fundo da narrativa é a redação de um jornal decadente e a cultura pop dos anos 80, com ênfase em referências cinematográficas, passagens pelo misticismo (astrologia, candomblé, I Ching) e música, o tempo todo, emoldurando o humor e a fina ironia do observador perpassando a trama.                                                                                  

Sua verve de contista se afina em cenas curtas sem se diluir ao longo do romance. Sua argúcia na percepção das motivações humanas essenciais - a sexualidade quase promíscua em busca de amor permeando todo o enredo - aparece, para quem já conhece sua produção, como uma extensão madura, como reafirmação de seus sonhos e de seus pesadelos já insinuados em seus contos.                                                                         O jornalista sem nome de “Onde andará Dulce Veiga?” que já viveu perdido em várias partes do mundo poderia ser Pérsio ou Santiago de sua novela “Pela Noite” ou ainda o cara dentro de um bar paulistano, numa madrugada melancólica, em “O Homem mais triste do Mundo”. Ou ainda, a tresnoitada protagonista de “Sapatinhos Vermelhos”. Em alguns momentos, o Passo da Guanxuma, cidade imaginária de Caio em outros contos aparece no romance. Embora, por ocasião de seu lançamento, Caio Fernando Abreu negasse ser ele o personagem de sua literatura “néon-realista”, num momento que dizia ter se “desembaraçado do próprio umbigo para chegar mais perto da ficção, do humano alheio” ,essa que é a história de um homem em busca de sua ânima ou de sua voz feminina – “que se possa cantar!” e a exclamação implícita em todo o texto, parece ser a articulação das várias narrativas e indagações que o autor trazia dentro de si, quase uma síntese do que salpicou por décadas em suas narrativas curtas.  Tanto que a primeira frase do livro é: “Eu deveria cantar”, e, a última: “E eu comecei a cantar”.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                              


Biografia
Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu em Santiago (RS)  em 1948 .                                                                         Contista, romancista, dramaturgo. Sua primeira publicação, o conto “Príncipe Sapo”, ocorre na revista Claudia, em 1966.  Aos 19 anos publica o romance “Limite Branco”.

No ano seguinte ingressa no curso de letras e em seguida no de Arte Dramática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mas abandona ambos para dedicar-se ao jornalismo.
Transfere-se para São Paulo, em 1968, após ser selecionado, em concurso nacional, para compor a primeira redação da revista Veja.

Dois anos depois, perseguido pela ditadura militar, refugia-se na chácara da escritora Hilda Hilst em Campinas (SP). Volta para Porto Alegre em 1970, e, após três anos exila-se na Europa, percorrendo Inglaterra, Suécia, França, Holanda e Espanha.

Retorna a Porto Alegre em 1974, transfere-se em 1983 para o Rio de Janeiro e depois de dois anos volta novamente para São Paulo. Vai para a França em 1994, a convite da Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs, de Saint Nazaire, onde escreve a novela “Bien Loin de Marienbad”.

Em setembro desse ano declara publicamente, em sua crônica semanal no jornal O Estado de S. Paulo, ser portador do vírus HIV e volta para Porto Alegre, onde morre em 1996. Seu livro de contos “Morangos Mofados”, publicado em 1982 na coleção Cantadas Literárias, da Editora Brasiliense, torna-se sucesso editorial e marca toda uma geração.Posteriormente, em 1983 publica “Triângulo das Águas” e ganha o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro para melhor livro de contos. Em 1988 outro livro seu leva esse mesmo prêmio: “Os Dragões não conhecem o Paraíso”. Ao todo, publicou 11 livros, incluindo infantis.
 
“Onde Andará Dulce Veiga?” é o segundo romance de sua carreira marcada pelos contos e por noveletas, que lhe rende  o Prêmio APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) para romance.  Seus textos já foram traduzidos para várias línguas.


* Escrito originalmente para o Nossas Letras





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