O convite
Ao aceitar o convite, Carolina teve um
estremecimento de alegria. Há muito tempo nutria aquela vontade na ponta dos
olhos, por onde entravam as cenas de uma festa, e mesmo o som das músicas, mas
principalmente das palavras felizes e dos risos. Era assim o salão que afagava
com seu pensamento: ambiente de muita alegria. De uma coisa Carolina tinha
consciência de que necessitava – de alegria.
Dos seus vinte e cinco anos, os últimos seis foram
dedicados ao sustento de seus três irmãos pequenos e órfãos. Doze horas por dia
costurava para um dos poucos alfaiates da cidade. Ternos que não via vestindo
alguém, ternos vazios até a hora de desfilarem em alguma festa.
O dia marcado se aproximava e Carolina não erguia
mais a cabeça. Tão desacostumada de si ela passava seu tempo que distraída só
pensou nos irmãos, como é que eles ficariam sozinhos em casa. Pensou em
declinar do convite, choramingando sobre uma lapela, chegou a comentar o fato
com os irmãos, à mesa na hora do café, passou um dia inteiro entre suspiros e
soluços de desistência, até que o irmão mais velho, quando voltou da faculdade,
a repreendeu com voz autoritária que, ninguém aqui nesta casa está em melhores
condições do que eu para tomar conta das crianças. E essa revelação fez de
Carolina uma pessoa feliz, tão feliz que pulou no pescoço do irmão e o beijou
com verdadeiro furor.
Nove horas da noite foi o horário combinado com
Luana, a prima da noiva, sua amiga dos tempos em que vizinharam. E Carolina
trabalhou até as oito, não tanto por necessidade como principalmente por
manter-se ocupada, ela e sua mente, que parecia não parar mais de criar para si
aquela festa. Havia duas calças e um paletó que poderiam ser entregues três dias
depois, porque, para o controle da ansiedade, Carolina tinha trabalhado bem
mais que o costume, pois não se perdoaria um atraso nas entregas por causa de
uma festa. O que o pai deixara de herança era aquela profissão e era capaz de
dormir sobre aqueles panos antes de se ver arruinada e sem os meios de
manter-se com os irmãos.
Muitas outras vezes Luana a tinha convidado para
saírem juntas – alguma distração. Mas poderia largar o ganha-pão em benefício
próprio? Ocupara o lugar da mãe, doente, como ajudante do pai desde os quinze
anos. A melhor parte de sua adolescência comprometida com o sustento da
família. Por fim, o pai também. E agora trabalhava sozinha. Por isso, sentia-se
muito orgulhosa de dar conta do serviço. Sozinha. As crianças, bem, na limpeza
da casa, alguma coisa na cozinha, como a louça, o café e outras simplicidades;
e nos quartos a arrumação das camas e das gavetas. A do meio, já passava a
roupa. Muito mal, mas não precisavam de nada melhor do que ela conseguia.
Carolina sentia-se muito bem com a família que
tinha. Mesmo assim tinha um olhar que, reparando-se bem, era um olhar meio
úmido, quase lacrimejante.
Às oito horas da noite resolveu interromper o
serviço. Tinha ainda uma hora, mas não estava certa de como apareceria, e isso
poderia demandar mais tempo do que imaginava.
Aguilhoada pela buzina, a costureira pulou da
banqueta arriscando bater a cabeça no espelho. Havia tirado e posto os óculos
uma infinidade de vezes, com mudanças correspondentes do cabelo, puxado para a
esquerda, para a direita, com coque ou trança, solto, apenas, descendo pelas
espáduas. O vestido não causou problema, pois tinha um único novo, talvez em
condições de aparecer. Seu único vestido longo, usado na formatura do irmão
quando terminou o Ensino Médio. No que ainda se atrapalhou um pouco foi na
escolha do broche. Um era escandalosamente grande. E feio. Voltou para o
estojo. Outro, um pouco menor, tinha a forma de uma bailarina, cuja cabeça era
uma safira, broche que em ocasiões de apertos financeiros era sempre lembrado,
mas nunca deixado no prego. Um, muito menor, era da cor do vestido e, por
diminuto, desapareceria. A escolha acabou recaindo sobre a bailarina. Mas onde
deveria ser colocado?, fechando o pescoço?, na gola à direita?, talvez na
esquerda. Finalmente se decidiu por esta última alternativa.
Já estava na porta, correndo, quando se lembrou da
bolsa. Voltou ao quarto dando encontrões nos irmãos, que aplaudiram a tutora
augurando-lhe uma noite muito feliz.
E foi assim que as duas amigas entraram no salão.
Carolina ainda puxava o vestido para que a barra não tivesse pontas, empurrava
para trás o cabelo, que o vento espalhara sobre seu rosto, o cabelo solto,
escorrido sobre as espáduas, ajeitava os óculos, e perguntava a Luana se sua
maquiagem não estava borrada. E dizendo isso, alisava o rosto com pontas de
dedos.
As mesas
estavam tomadas e, para o jantar as duas amigas tiveram de separar-se ocupando
vagas em mesas não muito distantes. Luana, por ser prima, foi muito cumprimentada,
abraçada, elogiada, situação que aos olhos de Carolina pareceu normal. Enfim,
era do meio, daquele ambiente por causa de seu parentesco.
As sete pessoas a que foi fazer companhia Carolina,
cumprimentaram-na com a distância máxima conseguida. Um casal bem jovem,
sentado em sua frente, comentou qualquer coisa em voz para ninguém mais ouvir.
E olhavam fixamente para a recém-chegada. Voltaram a cochichar, boca perto de
ouvido, e sorriram. Meu vestido, meu Deus, é dele que estão falando?
Disfarçadamente examinou a bolsa, depois, baixando um pouco a cabeça, enfiou os
olhos pelo decote, se decente, o broche com a cabeça de safira, enfim, tudo
opaco se comparada com o brilho das outras mulheres.
Foi servida e provou o prato com a ponta dos
dentes.
O casal de jovens que cochichava, felizmente,
levantou-se e foi dançar. Carolina limpou o suor da testa, aliviada, com o
lencinho de seda que trazia na bolsa. As outras cinco pessoas que restaram à
mesa, ela percebeu, eram todos conhecidos entre si. Conversavam como se
Carolina fosse apenas uma estátua, um objeto de adorno, colocado ali para o
deleite dos demais. Uma das mulheres, entretanto, não deixava de observá-la até
o ponto em que Carolina pediu licença, muito educada, levantou-se e foi passear
pelo salão. Luana havia desaparecido.
Ao sentir-se desprezada pelo olhar de dois rapazes
que passavam por ela, Carolina descobriu nos dois ternos seu acabamento. Para
seus olhos acostumados, foi fácil perceber
que eles exibiam com elegância, o que a ela tinha custado horas de serviço e algum
suor. Seria ciúme, então, o que sentia? Um pedaço de sua vida fazia figura no
corpo dos rapazes. Às costas dos dois,
ainda ouviu que um deles comentou: De onde desencavaram esta múmia?
Aflita, odiando o ambiente, saiu em busca
desesperada de sua amiga. Luana dançava e percebeu as rajadas de olhares de
Carolina em todas as direções. Pediu licença a seu par e foi em socorro da
companheira.
Impossível, retrucou Luana. Eles jamais diriam uma
coisa dessas. E insistiu para que a amiga ficasse mais tempo na festa.
Inutilmente. Carolina já se tinha desmanchado.
(O conto acima deverá integrar a coletânea Último domingo de outubro a ser editada... bem, sabe-se lá quando).
(O conto acima deverá integrar a coletânea Último domingo de outubro a ser editada... bem, sabe-se lá quando).
Lindo conto!
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