sexta-feira, 30 de outubro de 2015

CONTOS CORRENTES

O convite

Ao aceitar o convite, Carolina teve um estremecimento de alegria. Há muito tempo nutria aquela vontade na ponta dos olhos, por onde entravam as cenas de uma festa, e mesmo o som das músicas, mas principalmente das palavras felizes e dos risos. Era assim o salão que afagava com seu pensamento: ambiente de muita alegria. De uma coisa Carolina tinha consciência de que necessitava – de alegria.

Dos seus vinte e cinco anos, os últimos seis foram dedicados ao sustento de seus três irmãos pequenos e órfãos. Doze horas por dia costurava para um dos poucos alfaiates da cidade. Ternos que não via vestindo alguém, ternos vazios até a hora de desfilarem em alguma festa. 
O dia marcado se aproximava e Carolina não erguia mais a cabeça. Tão desacostumada de si ela passava seu tempo que distraída só pensou nos irmãos, como é que eles ficariam sozinhos em casa. Pensou em declinar do convite, choramingando sobre uma lapela, chegou a comentar o fato com os irmãos, à mesa na hora do café, passou um dia inteiro entre suspiros e soluços de desistência, até que o irmão mais velho, quando voltou da faculdade, a repreendeu com voz autoritária que, ninguém aqui nesta casa está em melhores condições do que eu para tomar conta das crianças. E essa revelação fez de Carolina uma pessoa feliz, tão feliz que pulou no pescoço do irmão e o beijou com verdadeiro furor.
Nove horas da noite foi o horário combinado com Luana, a prima da noiva, sua amiga dos tempos em que vizinharam. E Carolina trabalhou até as oito, não tanto por necessidade como principalmente por manter-se ocupada, ela e sua mente, que parecia não parar mais de criar para si aquela festa. Havia duas calças e um paletó que poderiam ser entregues três dias depois, porque, para o controle da ansiedade, Carolina tinha trabalhado bem mais que o costume, pois não se perdoaria um atraso nas entregas por causa de uma festa. O que o pai deixara de herança era aquela profissão e era capaz de dormir sobre aqueles panos antes de se ver arruinada e sem os meios de manter-se com os irmãos.
Muitas outras vezes Luana a tinha convidado para saírem juntas – alguma distração. Mas poderia largar o ganha-pão em benefício próprio? Ocupara o lugar da mãe, doente, como ajudante do pai desde os quinze anos. A melhor parte de sua adolescência comprometida com o sustento da família. Por fim, o pai também. E agora trabalhava sozinha. Por isso, sentia-se muito orgulhosa de dar conta do serviço. Sozinha. As crianças, bem, na limpeza da casa, alguma coisa na cozinha, como a louça, o café e outras simplicidades; e nos quartos a arrumação das camas e das gavetas. A do meio, já passava a roupa. Muito mal, mas não precisavam de nada melhor do que ela conseguia.
Carolina sentia-se muito bem com a família que tinha. Mesmo assim tinha um olhar que, reparando-se bem, era um olhar meio úmido, quase lacrimejante.
Às oito horas da noite resolveu interromper o serviço. Tinha ainda uma hora, mas não estava certa de como apareceria, e isso poderia demandar mais tempo do que imaginava.
Aguilhoada pela buzina, a costureira pulou da banqueta arriscando bater a cabeça no espelho. Havia tirado e posto os óculos uma infinidade de vezes, com mudanças correspondentes do cabelo, puxado para a esquerda, para a direita, com coque ou trança, solto, apenas, descendo pelas espáduas. O vestido não causou problema, pois tinha um único novo, talvez em condições de aparecer. Seu único vestido longo, usado na formatura do irmão quando terminou o Ensino Médio. No que ainda se atrapalhou um pouco foi na escolha do broche. Um era escandalosamente grande. E feio. Voltou para o estojo. Outro, um pouco menor, tinha a forma de uma bailarina, cuja cabeça era uma safira, broche que em ocasiões de apertos financeiros era sempre lembrado, mas nunca deixado no prego. Um, muito menor, era da cor do vestido e, por diminuto, desapareceria. A escolha acabou recaindo sobre a bailarina. Mas onde deveria ser colocado?, fechando o pescoço?, na gola à direita?, talvez na esquerda. Finalmente se decidiu por esta última alternativa. 
Já estava na porta, correndo, quando se lembrou da bolsa. Voltou ao quarto dando encontrões nos irmãos, que aplaudiram a tutora augurando-lhe uma noite muito feliz.
E foi assim que as duas amigas entraram no salão. Carolina ainda puxava o vestido para que a barra não tivesse pontas, empurrava para trás o cabelo, que o vento espalhara sobre seu rosto, o cabelo solto, escorrido sobre as espáduas, ajeitava os óculos, e perguntava a Luana se sua maquiagem não estava borrada. E dizendo isso, alisava o rosto com pontas de dedos.
  As mesas estavam tomadas e, para o jantar as duas amigas tiveram de separar-se ocupando vagas em mesas não muito distantes. Luana, por ser prima, foi muito cumprimentada, abraçada, elogiada, situação que aos olhos de Carolina pareceu normal. Enfim, era do meio, daquele ambiente por causa de seu parentesco.
As sete pessoas a que foi fazer companhia Carolina, cumprimentaram-na com a distância máxima conseguida. Um casal bem jovem, sentado em sua frente, comentou qualquer coisa em voz para ninguém mais ouvir. E olhavam fixamente para a recém-chegada. Voltaram a cochichar, boca perto de ouvido, e sorriram. Meu vestido, meu Deus, é dele que estão falando? Disfarçadamente examinou a bolsa, depois, baixando um pouco a cabeça, enfiou os olhos pelo decote, se decente, o broche com a cabeça de safira, enfim, tudo opaco se comparada com o brilho das outras mulheres.
Foi servida e provou o prato com a ponta dos dentes.
O casal de jovens que cochichava, felizmente, levantou-se e foi dançar. Carolina limpou o suor da testa, aliviada, com o lencinho de seda que trazia na bolsa. As outras cinco pessoas que restaram à mesa, ela percebeu, eram todos conhecidos entre si. Conversavam como se Carolina fosse apenas uma estátua, um objeto de adorno, colocado ali para o deleite dos demais. Uma das mulheres, entretanto, não deixava de observá-la até o ponto em que Carolina pediu licença, muito educada, levantou-se e foi passear pelo salão. Luana havia desaparecido.
Ao sentir-se desprezada pelo olhar de dois rapazes que passavam por ela, Carolina descobriu nos dois ternos seu acabamento. Para seus olhos acostumados, foi fácil  perceber que eles exibiam com elegância, o que a ela tinha custado horas de serviço e algum suor. Seria ciúme, então, o que sentia? Um pedaço de sua vida fazia figura no corpo dos rapazes.  Às costas dos dois, ainda ouviu que um deles comentou: De onde desencavaram esta múmia?
Aflita, odiando o ambiente, saiu em busca desesperada de sua amiga. Luana dançava e percebeu as rajadas de olhares de Carolina em todas as direções. Pediu licença a seu par e foi em socorro da companheira.

Impossível, retrucou Luana. Eles jamais diriam uma coisa dessas. E insistiu para que a amiga ficasse mais tempo na festa. Inutilmente. Carolina já se tinha desmanchado. 

(O conto acima deverá integrar a coletânea Último domingo de outubro a ser editada... bem, sabe-se lá quando). 

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