O título de hoje é POUSO DO SOSSEGO, editado pela Global. Para mais informações, acesse a página do livro aqui no Blog do Menalton.
Pouso do Sossego, Menalton Braff
Capítulo 1
Quase uma hora sem qualquer
som humano reconhecível, som de garganta, nossos ouvidos há várias horas
viajando cheios do ronco monótono do carro, torpor ameno, me assusto quando
papai se vira para trás e com voz colorida avisa, Olha o posto! Ele quase pula
no banco para que não deixemos de ver o posto. O posto, o último antes de Pouso
do Sossego. Mas por que sua alegria repentina, quais lembranças podem estar
nascendo deste cenário? Ele nada diz, contentando-se em expor no rosto uma
alegria que não entendo. O mundo, então, é a consciência que temos dele? Olho o
posto e o que vejo são carros e caminhões, tratores
que talvez sejam das
fazendas de nossos vizinhos, algumas pessoas caminhando indiferentes a quem
passa pela estrada. Por trás da marquise das bombas de combustível, aparece o
restaurante de portas e janelas abertas, tudo com um ar sério e modesto. Ao
lado, mas distante, a boca escura da borracharia escancarada. Desde que de mim
me lembro o posto tem as mesmas cores, o mesmo ar encardido, e tenho a sensação
de que são sempre os mesmos carros e caminhões que ficam por ali, na preguiça,
esperando o borracheiro ou o frentista. Muito raramente um trator de meu pai
abastecendo, os tambores com seus cheiros espalhados pelos galpões.
Olho o posto, então fico
observando meu pai, à espera de que desenrole as ideias, isso que o fez alegre
com a visão do posto. Mas ele se volta pra frente com a expressão feliz de quem
já viveu ali momentos de que a memória não se desfaz. Meus olhos interrogam
minha mãe, em cujo rosto só encontro sono e o cansaço da viagem. Minha mãe,
coitada, volta encoberta de luto e ela não tem muito jeito pra lidar com isso. Apenas
aperta minha mão. Chego à conclusão de que aquele lugar não diz nada para ela também.
Ficou para trás apenas como pedaço de paisagem, com suas cores e formas, marco
na beira da estrada anunciando alguma distância, indicando um rumo. Para mim ele
apenas diz que já não estamos muito longe de Pouso do Sossego. Terá sido essa a
intenção do meu pai?
Não gosto do jeito como o
motorista me encara. Sua curiosidade a meu respeito é irritante. Que sabe ele
sobre mim? Não posso olhar para o retrovisor sem que encontre seus dois olhos
que me engolem cheios de gula. Chegando em casa vou pedir ao papai que o
despeça. Ele não deve ser de Pouso do Sossego, é uma fisionomia inteiramente estranha.
Vai aprender a se meter com gente da laia dele. Não ouço o que meu pai lhe diz,
mas agora o carro anda mais devagar.
Entramos em uma das últimas
curvas antes de chegar à cidade. Papai se volta para me perscrutar, e nos
encontramos cúmplices, por isso sorrimos, pois só nós dois sabemos que foi aqui
mesmo o sequestro: ele empunhando um revólver para me livrar do camburão.
Também, não sei o que ainda não fiz na minha vida, se até de camburão já viajei.
Não tive tempo de ver, mas ele me contou mais tarde que no alto dos barrancos, dos
dois lados, umas vinte bocas de espingarda apontavam para os dois guardas.
Conheço esta paisagem como
se fizesse parte do meu corpo: uma tatuagem. Aquelas duas mangueiras quase
gêmeas, o renque de eucaliptos da divisa, a manada de éguas do Alfonso, depois
da cerca as vacas magras do Estefânio Alvarado, e mais adiante o curral. A
gente sempre diz as vacas magras, mas de magras é que elas não têm nada. Este
Alvarado sozinho abastece Pouso do Sossego de leite. Esta pedra, onde todo candidato
a prefeito escreve a cal seu nome, e onde o Armando, dezoito anos, interrompeu
sua carreira na terra. Foi difícil arrumar seu rosto para o enterro. Não olhei muito,
pois não gosto, talvez por isso tenha ficado com a impressão de que não era o Armando
que estava ali, mas alguma coisa de cera em seu lugar. Cópia muito mal feita. Tudo
isso aqui é conhecido, mas não me lembrava de mais nada, então é como se estivesse
vendo pela primeira vez. Como um filme já visto, mas esquecido. À medida que
vão passando, as imagens vão sendo ressuscitadas na memória. Estavam lá guardadas,
mas sem força pra emergir do fundo escuro que a gente chama de inconsciente.
Agora já penso que posso
ficar contente com a volta, mas passei um susto muito grande com a morte do meu
avô. Me pareceu que o mundo não teria mais lugar pra mim. A ideia de voltar pra
Pouso do Sossego me embrulhava o estômago. Era uma solução impossível. Na casa
de meus avós, eu curtia umas férias, era um hiato na vida, uma temporada. Fazia
apenas o que me desse prazer. Mas Pouso do Sossego outra vez? Me enterrava
viva. Meus tios, os irmãos da minha mãe, há muito tinham decidido vender a
fazenda. A vovó deveria ir pra cidade morar com a tia Judite. E eu? Quando meu
pai chegou com a mamãe, nos últimos minutos do velório, me senti salva. Olha
só, eu digo, e minha voz me soa infantil, as primeiras casas da Vila da Palha!
São as mesmas do meu tempo, mas a paisagem é muito forte, como se fosse
inteiramente nova. Depois de três anos, vou ter de me lembrar de tudo que me
aconteceu antes de sair da cidade? O pesadelo é uma loucura que a gente vive
durante o sono. Um peso muito grande, os pensamentos sem nenhum tempero – a
vertigem. Não gosto de me lembrar. No escuro do camburão, o corpo machucado
doendo, o Teodoro só dizia bobagens sobre casamento, viver no exterior, coisas
assim. Ele estava satisfeito, muito crente num futuro de glória. Talvez tivesse
mais experiências como aquela do que eu poderia imaginar: o rapto de alguma
filha.
Durante quase todo o tempo
da viagem, senti o coração murcho. Algumas vezes de ansiedade por chegar logo e
me aninhar na minha casa, protegida. Outras, no entanto, o que me azedava a
saliva era a ideia da proteção que teria de aceitar, voltando pra casa.
Ali, a igrejinha onde nos
encontramos. Eu tremia feito uma idiota. Estava com medo porque era um voo
noturno sem mapa e sem bússola. No canto de trás, chegamos quase juntos. A
escolha do lugar foi minha. Eu passo olhando, mais com a memória do que com os
olhos, e eles, aqui dentro, não conseguem imaginar os pensamentos que me vão desfilando
sem nenhum controle pela cabeça: uma coreografia absurda. Ali o córrego. Dizem
que o Teodoro foi assassinado e jogado na lagoa onde este córrego vai despejar sua
água suja. A delegacia com esta fachada sinistra. Não adianta, a pintura é mais
ou menos nova, mesmo assim imagino essas paredes guardando, do outro lado,
muitos gritos de gente apanhando. Dizem que o delegado, quando quer. Contam
histórias sobre o que acontece aí dentro. E a subida até a praça. As lojas com
as mesmas caras de coisa antiga: as platibandas com seus frisos, algumas com
certidão de nascimento exposta em quatro algarismos, portas e janelas altas e
estreitas. Pouca gente nas ruas, a esta hora. Nenhum rosto conhecido. E o
terreno antes da lanchonete continua baldio. Coberto de mato. Um dia
encontraram um homem morto jogado aí. Ninguém sabia de onde ele tinha
aparecido. Aqui em Pouso do Sossego acontecem coisas estranhas.
A torre da igreja apontando
para o céu. A torre. Ela me viu crescer, assistiu a todos os meus sonhos lá no
quarto sem ousar interferir. A primeira imagem que eu sempre vi ao abrir as
cortinas da janela era esta torre aí. E o mesmo relógio. Tenho vontade de comentar
como me sinto, mas não saberia dizer o que é. Debaixo de uma destas árvores, numa
tarde de sol parado e quente, jurei para a Sueli que aqui não ficava mais. Ou
foi ela quem jurou, já não tenho clareza, os fatos todos cinza como em meus
sonhos. E aqui estou, como se o destino fosse uma força contra a qual não
adianta lutar. Rodei o mundo, estive com meu pai nos Estados Unidos, cheguei a
pensar que ele me deixaria por lá, morei com meus avós, conheci alguns de meus
tios que ainda não tinha visto, e cá estou de volta com a sensação angustiante
de que nunca saí daqui, a não ser tropeçando nas sombras de um sonho em branco
e preto.
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