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1
O telefone ricocheteando pelas paredes do apartamento, muito
súbito e sério, com o castigo deste seu grito estridente, que ele repete
obstinado, e repete, acaba esmagando meus nervos. Minha mão para, atenta, e de
minha boca entreaberta escorre um fio branco de pasta e baba, que a água da
torneira carrega para o ralo da pia. É uma sangria, uma vida que se esvai para
fora do tempo. Em geral o telefone não me aborrece, instrumento de trabalho,
mas domingo de manhã, quando estou escovando os dentes e tenho de fazer um
bochecho rápido para ver quem, no mundo, já está acordado, sinto uma dor que me
sobe pela coluna, dor fria que acaba com meu bom humor. Enquanto saio do
banheiro limpando a boca, só não tenho a certeza do que se trata porque ainda
não consegui acordar direito. De ontem, quase nada além da boca amarga do
uísque nacional e uns pedaços de música na memória de meus ouvidos. Umas duas
horas quando saímos da boate. O resto do dia parece ter sido apagado ou envolto
numa bruma cinza. Então o telefone me lembra o esforço para convencer Ernesto,
aquele burocrata cretino que responde pela gráfica, uma criatura estúpida e de
imbecilidade crônica, cruamente engessada em suas normas e
procedimentos.
Vontade de quebrar seu pescoço com minhas mãos. Queria a ordem por escrito. Com
assinatura, ele gritava histérico, com assinatura. Mas teu diretor está na
Bélgica, grande imbecil, não está vendo que é impossível? De boca, não, ele
berrava, de boca não aceito. E sacudia a cabeça, o rosto muito vermelho e duas
veias descendo grossas por dentro do pescoço.
Mais um minuto e eu teria falhado, desistindo. Então chegou
um de seus ajudantes dizendo que as
máquinas iam parar, e ele, quase chorando, mas sem querer arcar com a
responsabilidade do atraso, cedeu: Desta vez passa, mas é só desta vez.
Deixo a escova de dentes cair no corredor e não me abaixo
para apanhá-la. Esta chamada em hora tão sem propósito me deixa apreensivo,
meio descontrolado. Preciso descobrir a origem desta neurose, a minha: telefone
fora de hora é mensageiro de tragédia. As piores notícias chegam voando como
noites, em horários os mais insólitos, quase sempre absurdos, e o fio do
telefone escurece um pedaço da vida. Eu não sei o que me espera porque não
quero saber. Finjo que não sei? Me recuso esta certeza morna, que desde ontem
mantenho presa em fundo escuro. É com minha mão suada que ergo o telefone do
pino.
Eu não quero mais pensar no que fiz. Quando saí da sala do
Ernesto, tentava naturalidade para não me denunciar, por isso pisei com alguma
delicadeza meus sapatos sobre o ladrilho gasto e não olhei para trás, mas senti
que ele estava esperando que o fizesse. Meus braços mantiveram-se rígidos, pois
nunca se sabe o que é natural para eles. Saí saindo, lento cuidadoso, tropeçando
no medo que sentia. Mas saí com a vitória à altura de meus olhos.
Das oficinas do Correio, fui direto para o Bigode da Prima,
onde é costume baixar o pessoal. Passava
um pouco das duas e, para minha decepção, não encontrei lá um único amigo com
quem compartilhar a sede.
Não sou tão ingênuo que já não esperasse a consequência da
minha atitude, mas mantenho meus olhos fechados, querendo acreditar que o mundo
será salvo por alguns atos de bravura.
A voz um pouco distorcida pelo aparelho pareceria natural se
não a conhecesse tão bem como conheço. É naturalidade excessiva, esta
delicadeza equilibrando-se em cada sílaba, como articulação de exercício. Finjo
que não estou percebendo de quem se trata para que o Armando de Sá seja
obrigado a se declarar, como ele faz rapidamente, É o Armando, porra, então não
conhece minha voz? Minha mão está suada e sinto um pouco de asco ao lambuzar o
telefone. Também digo pois-não-seu-Armando com uma naturalidade exagerada. Pode
não ser asco, esta bola fria que me sobe do estômago?
Conversa menos do que meu sofrimento antecipado esperava.
Diz apenas que eu esteja na sala dele amanhã às oito horas em ponto. Pergunta
com um pouco de metal na voz, que manteve escondido para ser natural, se eu
entendi. Sua pergunta já nos põe a quilômetros um do outro. O tom com que
pergunta, como se falasse a uma criança, me deixa bastante irritado, mas não
tenho tempo para reagir: em seguida ele desliga o telefone.
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