quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

DEGUSTAÇÃO 2 - MOÇA COM CHAPÉU DE PALHA

Hoje você vai ler o primeiro capítulo de MOÇA COM CHAPÉU DE PALHA, editado pela Língua Geral, em 2009.

Para mais informações, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.


Moça com chapéu de palha - Menalton Braff

1

O telefone ricocheteando pelas paredes do apartamento, muito súbito e sério, com o castigo deste seu grito estridente, que ele repete obstinado, e repete, acaba esmagando meus nervos. Minha mão para, atenta, e de minha boca entreaberta escorre um fio branco de pasta e baba, que a água da torneira carrega para o ralo da pia. É uma sangria, uma vida que se esvai para fora do tempo. Em geral o telefone não me aborrece, instrumento de trabalho, mas domingo de manhã, quando estou escovando os dentes e tenho de fazer um bochecho rápido para ver quem, no mundo, já está acordado, sinto uma dor que me sobe pela coluna, dor fria que acaba com meu bom humor. Enquanto saio do banheiro limpando a boca, só não tenho a certeza do que se trata porque ainda não consegui acordar direito. De ontem, quase nada além da boca amarga do uísque nacional e uns pedaços de música na memória de meus ouvidos. Umas duas horas quando saímos da boate. O resto do dia parece ter sido apagado ou envolto numa bruma cinza. Então o telefone me lembra o esforço para convencer Ernesto, aquele burocrata cretino que responde pela gráfica, uma criatura estúpida e de imbecilidade crônica, cruamente engessada em suas normas e
procedimentos. Vontade de quebrar seu pescoço com minhas mãos. Queria a ordem por escrito. Com assinatura, ele gritava histérico, com assinatura. Mas teu diretor está na Bélgica, grande imbecil, não está vendo que é impossível? De boca, não, ele berrava, de boca não aceito. E sacudia a cabeça, o rosto muito vermelho e duas veias descendo grossas por dentro do pescoço.

Mais um minuto e eu teria falhado, desistindo. Então chegou um de seus ajudantes  dizendo que as máquinas iam parar, e ele, quase chorando, mas sem querer arcar com a responsabilidade do atraso, cedeu: Desta vez passa, mas é só desta vez. 

Respirei aliviado e com medo, sem saber o fim de tudo aquilo.

Deixo a escova de dentes cair no corredor e não me abaixo para apanhá-la. Esta chamada em hora tão sem propósito me deixa apreensivo, meio descontrolado. Preciso descobrir a origem desta neurose, a minha: telefone fora de hora é mensageiro de tragédia. As piores notícias chegam voando como noites, em horários os mais insólitos, quase sempre absurdos, e o fio do telefone escurece um pedaço da vida. Eu não sei o que me espera porque não quero saber. Finjo que não sei? Me recuso esta certeza morna, que desde ontem mantenho presa em fundo escuro. É com minha mão suada que ergo o telefone do pino.

Eu não quero mais pensar no que fiz. Quando saí da sala do Ernesto, tentava naturalidade para não me denunciar, por isso pisei com alguma delicadeza meus sapatos sobre o ladrilho gasto e não olhei para trás, mas senti que ele estava esperando que o fizesse. Meus braços mantiveram-se rígidos, pois nunca se sabe o que é natural para eles. Saí saindo, lento cuidadoso, tropeçando no medo que sentia. Mas saí com a vitória à altura de meus olhos.  

Das oficinas do Correio, fui direto para o Bigode da Prima, onde é costume baixar o pessoal.  Passava um pouco das duas e, para minha decepção, não encontrei lá um único amigo com quem compartilhar a sede.

Não sou tão ingênuo que já não esperasse a consequência da minha atitude, mas mantenho meus olhos fechados, querendo acreditar que o mundo será salvo por alguns atos de bravura.

A voz um pouco distorcida pelo aparelho pareceria natural se não a conhecesse tão bem como conheço. É naturalidade excessiva, esta delicadeza equilibrando-se em cada sílaba, como articulação de exercício. Finjo que não estou percebendo de quem se trata para que o Armando de Sá seja obrigado a se declarar, como ele faz rapidamente, É o Armando, porra, então não conhece minha voz? Minha mão está suada e sinto um pouco de asco ao lambuzar o telefone. Também digo pois-não-seu-Armando com uma naturalidade exagerada. Pode não ser asco, esta bola fria que me sobe do estômago?


Conversa menos do que meu sofrimento antecipado esperava. Diz apenas que eu esteja na sala dele amanhã às oito horas em ponto. Pergunta com um pouco de metal na voz, que manteve escondido para ser natural, se eu entendi. Sua pergunta já nos põe a quilômetros um do outro. O tom com que pergunta, como se falasse a uma criança, me deixa bastante irritado, mas não tenho tempo para reagir: em seguida ele desliga o telefone.

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