
O ESCRITOR E OS PRESIDIÁRIOS
(Luis Eblak)
Menalton Braff é um escritor premiado. Já ganhou o Jabuti de
melhor romance, em 2000 (por "À Sombra do Cipreste"), e foi finalista
de diversos prêmios, como o São Paulo de Literatura. Seus livros são elogiados
por quem entende de literatura (casos de Manoel Costa Pinto, José Castello,
Fabrício Carpinejar).
Amante de cinema de qualidade e música erudita, esse gaúcho
até sentiu algo estranho quando foi convidado para falar a um público seleto:
presidiários do interior paulista. Mas topou e lá foi.
Sua escrita é refinada, muitas vezes de difícil leitura.
Professor de literatura por mais de 20 anos e autor de mais de 20 livros, ele
falou a pouco mais de 20 presos sobre uma dessas obras destinadas a um público
mais letrado, “Que enchente me carrega?” (2003).
Ele me deu o depoimento abaixo. Eu até que tentei em
transformar em reportagem e oferecer para a Folha. Mas a Lava Jato e a tragédia
de Mariana me tomaram mais tempo do que eu esperava nos últimos dias. Por isso
resolvi publicar neste FB para meus amigos.
Abaixo, quem conta a história toda (e com muito mais
capacidade que este eterno aspirante a repórter) é o próprio Menalton.
***
"No Centro de Ressocialização Masculina de Araraquara,
os detentos têm acesso a uma biblioteca interna, e são os monitores (também
detentos) que a organizam e controlam. Faz inveja a muitas outras que conheço.
A FUNPAC (uma instituição oficial de apoio aos detentos,
mantendo cursos, oficinas de várias categorias, enfim, atividades educativas e
produtivas) em parceria com a Fundação Palavra Mágica tem incentivado a formação de
Clubes de Leitura no sistema prisional.
Inicialmente, recebi um convite através de Galeno Amorim, um
dos fundadores da FPM, que me relatou o seguinte:
Cerca de vinte e poucos detentos do CR de Araraquara, como
costumam fazer, reuniram-se para escolher o próximo livro a ser lido pelo
Clube. A escolha recaiu sobre o romance Que enchente me carrega?, um dos livros
disponíveis na biblioteca.
Depois de lido o romance e discutido, os detentos ficaram
sabendo que o autor morava na região e não deram mais descanso ao Dr. Tuca, o
diretor da unidade, enquanto ele não descobriu os caminhos para chegar ao
autor.
O romance Que enchente me carrega? foi concebido para
leitores de boa experiência de leitura, e isso pelas técnicas narrativas
empregadas, como o fluxo de consciência, a fragmentação, a alinearidade, as
sugestões, alusões, as elipses de palavras ou de situações, enfim, um discurso
para quem está habituado à linguagem da literatura contemporânea.
Bem, no dia 28 de setembro, às 15h, o autor do romance
estava pela primeira vez atrás das grades. A primeira impressão foi um tanto
arrepiante. Tinha pulado para um outro mundo, onde os códigos eram todos
diferentes. Tive de me desfazer da cinta enquanto passava por um detector de
metais, o celular já tinha ficado no carro, o tablete, com o qual pretendia
fazer algumas fotos, passou por um exame, enfim, um pulo um tanto assustador.
Enfim, caí na sala da biblioteca, em companhia de umas
trinta pessoas, entre as quais o Silvio L do Prado, gerente da Funap e o Dr.
Tuca, Diretor do CR. Os demais eram detentos em sua quase totalidade.
Reunidos em cadeiras contra as três paredes, os leitores,
num silêncio de mosteiro, ouviram seu Diretor apresentar o autor daquele livro.
Em seguida, comecei a falar sobre a gênese do romance, como
surgiram as primeiras ideias, que formariam os temas (principal e secundários)
e como foram surgindo as imagens que formariam a parte figurativa do discurso.
Bem mais de uma hora de palestra a respeito de uma das
formas como se realiza um romance. A atenção dos detentos era comovente.
Ao final da exposição inicial, iniciou-se o pingue-pongue,
as perguntas deles, seus comentários, sua avaliação.
Fiquei impressionado tanto com a pertinência das perguntas,
como com o nível dos comentários, pois supunha ter sido muito difícil para eles
a interpretação do texto.
Um dos detentos relatou que havia lido três vezes o livro,
pois tinha sempre a sensação de que alguma coisa lhe havia escapado, e só a
recuperava na leitura seguinte.
A maior surpresa, entretanto, ficou por conta da paródia
composta por eles. Três dos detentos, com violão e flauta transversa, me
apresentaram afinadamente a paródia em que personagens e situações do livro
eram cantadas.
Por fim, a mesa dos salgados e sucos, ou seja, a festa que
premiava os leitores. Em seguida, o Diretor convidou-se a conhecer outros
espaços da unidade prisional.
Experiências semelhantes nunca tive, a não ser as salas de
aula, e as palestras sobre literatura em feiras do livros e eventos do mesmo
tipo.
Voltei para casa com algumas opiniões modificadas. Uma delas
é que não se pode, em hipótese alguma, botar todos os habitantes de um presídio
no mesmo saco. A diversidade de razões por que estão lá, as enormes diferenças
de índoles dos detentos, faz de uma prisão um microcosmo que reproduz nossa
sociedade."
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