No cruzamento
Aquele era o único recanto da cidade que nestes últimos
cinquenta anos tinha-se mantido sem mudança. Por ali, desde garoto eu passava
todos os dias mais ou menos a mesma hora. Em dias de chuva protegido por uma
capa impermeável e um capuz pontudo e alto, em dias de sol muito quente, o
paletó pendurado às costas preso por um dedo. No cruzamento de duas ruas
tranquilas, de pouco movimento, os vértices que se formavam em esquinas, as
quatro, eram ângulos de noventa graus.
Chegando por perto dos meus quinze anos, saía toda manhã com
o braço enfiado na alça de um cesto coberto por uma toalha de pratos. Ia
visitar as obras da cidade. Do bairro, aqui do nosso bairro, conhecia todas e
tinha nelas vários fregueses. Os pasteis que minha mãe fazia, de carne e de
palmito, eram muito populares entre os pedreiros.
Um dia, sentado sobre uma pilha de tijolos enquanto os
operários faziam sua pausa em volta da minha cesta, o Sol subitamente sumiu
atrás de uma nuvem, e o mestre de obras, ainda mastigando o fim de um pastel,
me perguntou se eu não tinha ambição. Fiquei surpreso com a pergunta, que me
pareceu absurda. A um vendedor de pasteis sentado em uma pilha de tijolos
enquanto os pedreiros em círculo fazem seu lanche, não se deve fazer uma
pergunta assim, uma pergunta exigindo que se pense na vida, no futuro, nos
projetos e objetivos. Você não frequenta escola?, por fim me perguntou.
Na época eu estava perto de terminar o curso ginasial, que
meus pais consideravam o termo de minha vida acadêmica, os dois tinham mal
terminado o primário. Minhas aulas eram à tarde, por isso saía bem cedo para o
trabalho.
Se não estudar, disse-me o mestre de obras, não passa disso.
E apontou para o bando de pedreiros que se afastavam para seus postos. Uma vida
dura, a deles, ainda comentou.
Não acredito que tenha sido outra a razão para que tivesse
insistido tanto para terminar o colegial. As palavras daquele homem que se
vestia de maneira diferente dos trabalhadores, que falava de um modo que não
era o deles, que chegava de automóvel e andava de roupa limpa, repercutem até
hoje em meus ouvidos.
Mais tarde, em lugar da cesta coberta por uma toalha,
continuei passando pelo cruzamento, mas agora com uma pasta de couro.
Todos os dias fazia o mesmo percurso: vinha pela rua São
Tomé até a esquina, virava à esquerda pela rua da Aroeira e seguia até a
avenida. Lá é que começavam as alterações de itinerário. A três quarteirões do
cruzamento da rua da Aroeira com a avenida havia vários prédios em construção.
Nos meus tempos de vendedor de pasteis, fazia todo o caminho a pé. Mais tarde,
trabalhando para a Primavera Perfumaria Ltda., continuei vindo até a avenida,
mas então para pegar um ônibus. E isso antes de comprar meu primeiro carro. Foi
o tempo em que visitei todas as farmácias da cidade.
Casei, mas não tive filhos. Uma opção de vida que nos causou
muito aborrecimento. As pessoas perguntavam, Mas e quando é que vem o herdeiro?
Sobretudo os parentes perguntavam. E com insistência. E o neném, já
encomendaram o neném? Meus pais recusavam a ideia de envelhecer sem um neto. E
as pessoas, próximas e distantes, olhavam-nos com certo rancor porque não
tínhamos filhos. O destino de todos os casais é sofrer esse castigo, e não se
conformavam com o fato de nos termos esquivado do mesmo. Um dia o Dr. Everaldo,
o dono da fábrica de perfumes, deixou recado no departamento de vendas para que
eu aparecesse em sua sala. Além de químico, o Dr. Everaldo era um velho de
bigodes, com autoridade, portanto, para me dar conselhos.
Logo que sentei, me jogou a pergunta sem introdução. É caso
de alguma doença?, ele quis saber. Ante minha negativa, o Dr. Everaldo pegou um
lápis com as duas mãos, cada uma segurando uma das pontas. Por algum tempo só
olhou para o lápis, como se tentasse descobrir ali algum segredo. Subitamente
me encarou, com seu ar paternal, e disse que agíamos muito mal, minha mulher e
eu, porque, se todos pensassem como nós, o que seria feito da humanidade?
Confessei-lhe minha ignorância no assunto, por isso me explicou que a
humanidade poderia desaparecer. E que mal há nisso?, foi o que perguntei depois
de refletir por alguns segundos. Que mal há nisso! Ele repetiu, a pele do rosto
mudando de cor. Ora, a humanidade, ele tentou continuar, a humanidade, então
deixaria de existir. Com todos os seus problemas, acrescentei. E desconfiei de
que ele se preocupava, então, era com o mercado. Para quem venderia seus
perfumes com o fim da humanidade? Tive vontade de rir, de comentar sua
preocupação, mas me calei muito respeitoso.
Por fim, depois de algumas tentativas de filosofar a
respeito do fim da humanidade, e já bem menos afetuoso, me mandou que fosse
trabalhar.
Meus cabelos
branquearam quando enviuvei e logo depois me aposentei.
Nunca deixei de passar pelo cruzamento diariamente. Depois
de aposentado, passo meus dias no parque, cerca de dois quilômetros daqui, e
aproveito para fazer logo cedo minha caminhada. Escolho algum banco, nem sempre
o mesmo, e sento. Dali acompanho o movimento dos carros, observo as pessoas que
passam, ouço os passarinhos nas árvores, que já me conhecem e me saúdam
diariamente. De vez em quando um jardineiro ou gari se aproxima, pede espaço no
meu banco para sentar e ficamos conversando sobre tudo ou nada sem pressa ou
ansiedade.
Nestes anos todos, o cruzamento manteve-se o mesmo que
conheci quando criança. Alteração nenhuma. Por fim, já passava por ali sem
perceber a paisagem. Os três prédios de esquina, com suas portas e janelas
geralmente fechadas, o prédio de três andares na esquina por onde eu passava
para dobrar à esquerda, com porta de aço para uma lojinha escura, quase sempre
deserta antes do meio-dia, o asfalto com algumas falhas no meio da rua e as
calçadas irregulares. O excesso de familiaridade apaga a paisagem. O cérebro
deixa de se ocupar dela.
Isso até três semanas atrás.
Na segunda-feira, depois do meu café, fechei a porta de
casa, guardei a chave no bolso e já ouvia com a imaginação o cumprimento dos
passarinhos e sentia o aroma das flores quando cheguei ao cruzamento.
Na frente da lojinha, a calçada estava interrompida por um
buraco de um metro e pouco de profundidade. Dentro dele, trabalhavam dois
homens sem camisa, já suados àquela hora da manhã. Os dois cavavam a terra com
suas pás e jogavam a terra sobre a estrada, que, de estreita, repartia sua
carga com a rua.
Senti como se estivesse sendo invadido em minha casa. Então
não se tem mais privacidade?, pensei com certa raiva. Parei na beirada do
buraco e os interpelei.
− O que vocês estão fazendo aqui?
Eles não diminuíram o ritmo com que cavavam, não se olharam
com vontade de rir, não tiveram reação nenhuma. Continuaram seu trabalho.
Mas aquele era meu cruzamento, desde mais de cinquenta anos
era meu cruzamento e os dois com certeza não imaginavam isso.
Segurei o braço do mais próximo obrigando-o a me olhar e
repeti a pergunta.
− O que vocês estão fazendo aqui?
Então os dois ficaram parados como se estivessem tentando
entender minha pergunta. Neste momento, percebi que cruzaram olhares, mas
olhares um tanto broncos, que não chegavam a resposta alguma.
− O Engenheiro mandou −, respondeu finalmente o que estava
mais próximo de mim e cujo braço eu havia segurado. E continuaram cavando sem
se preocupar com minha presença.
Na volta do parque, como este lado da cidade já estivesse
entrando na parte escura do dia, o buraco estava lá, bem mais fundo do que
naquela manhã, uma cratera protegida por uma fita amarela e preta para que
ninguém, durante a noite, resolvesse
dormir lá dentro, que era lá embaixo, porque um sozinho, um ser sem
acompanhante, era provável que não tivesse como escalar aquela altura.
Na manhã seguinte, a porta da lojinha continuava fechada,
bem beirando o buraco, dentro do qual agora trabalhavam quatro homens sem
camisa, esburacando para dentro da rua, porque o primeiro buraco, para quatro,
já se mostrava muito estreito. Assim é que uns cinco metros quadrados do
asfalto já tinham desaparecido e, enquanto dois deles cavavam e afrouxavam a
terra, os outros dois a jogavam sobre a rua, onde já se viam duas montanhas.
Tive de fazer uma volta desviando para a outra calçada, a do
lado de lá. Mas voltei até a beira do buraco, parei e gritei, perguntando aos
trabalhadores o que estavam procurando no cruzamento, esburacando uma paisagem
com mais de cinquenta anos. Eles suspenderam o trabalho por alguns segundos,
refletindo, talvez tentando encontrar uma resposta para minha pergunta.
Finalmente um depois do outro todos ergueram os ombros informando que não
sabiam. Um deles me encarou e repetiu que era ordem do Engenheiro.
Agora não se passava um dia sem que a cratera tivesse
aumentado seu diâmetro e sua profundidade. E assim foi até a sexta-feira.
Quando a chuva desabou, por volta das três horas da tarde,
vesti rapidamente minha capa impermeável, me cobri com o capuz pontudo e vim de
volta para casa. Ao passar pelo cruzamento, uns cinco operários estavam cavando
valetas para evitar que a enxurrada jogasse água no buraco, ao mesmo tempo em que
outros cinco instalavam uma imensa tenda sobre ele. Aquilo, de longe, parecia
um circo. O trânsito já havia sido desviado para outras ruas, a lojinha nunca
mais abrira sua porta de aço, e os poucos transeuntes que ainda usavam o
cruzamento tinham de caminhar com um pé atrás do outro, rente à parede, porque
as calçadas haviam sido transformadas em imensos fossos, de onde seria difícil
escapar sem ajuda.
Na segunda-feira seguinte, a chuva tinha parado no sábado,
há uma semana de agora, me dirigia para o parque sem ainda saber se a capa
seria utilizada, um céu cinza nos cobria, quando cheguei ao cruzamento das ruas
Aroeira e São Tomé. Seria mentir que me assustei, porque de tudo já vi na minha
vida e não me assusto mais, mas fiquei surpreso. A tenda tinha sido desmontada
e em volta do buraco uma chusma de trabalhadores se agitava.
Passei pela faixa de dez centímetros entre o buraco e a
parede da lojinha, passei raspando o corpo no reboco áspero e já no lado de lá
gritei para um grupo de homens que jogavam terra no buracão: − Mas o que é que
vocês está fazendo?
O que aparentava ser o mais velho deles parou e me olhou
rindo para responder: − Pois então não está vendo?
E continuou jogando terra para o imenso oco na rua.
Hoje é novamente
segunda-feira. Estou no cruzamento, no meu e encontro o Engenheiro de prancheta
na mão fazendo anotações. A cratera foi fechada durante esta semana, a rua
recebeu nova camada de asfalto e a calçada está com lajotas novas.
Vendo que eu olhava para tudo aquilo com certo interesse, o
Engenheiro se aproximou para comentar:
− O trabalho está perfeito, não está?
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