sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

No cruzamento    


Aquele era o único recanto da cidade que nestes últimos cinquenta anos tinha-se mantido sem mudança. Por ali, desde garoto eu passava todos os dias mais ou menos a mesma hora. Em dias de chuva protegido por uma capa impermeável e um capuz pontudo e alto, em dias de sol muito quente, o paletó pendurado às costas preso por um dedo. No cruzamento de duas ruas tranquilas, de pouco movimento, os vértices que se formavam em esquinas, as quatro, eram ângulos de noventa graus.

Chegando por perto dos meus quinze anos, saía toda manhã com o braço enfiado na alça de um cesto coberto por uma toalha de pratos. Ia visitar as obras da cidade. Do bairro, aqui do nosso bairro, conhecia todas e tinha nelas vários fregueses. Os pasteis que minha mãe fazia, de carne e de palmito, eram muito populares entre os pedreiros.
Um dia, sentado sobre uma pilha de tijolos enquanto os operários faziam sua pausa em volta da minha cesta, o Sol subitamente sumiu atrás de uma nuvem, e o mestre de obras, ainda mastigando o fim de um pastel, me perguntou se eu não tinha ambição. Fiquei surpreso com a pergunta, que me pareceu absurda. A um vendedor de pasteis sentado em uma pilha de tijolos enquanto os pedreiros em círculo fazem seu lanche, não se deve fazer uma pergunta assim, uma pergunta exigindo que se pense na vida, no futuro, nos projetos e objetivos. Você não frequenta escola?, por fim me perguntou.
Na época eu estava perto de terminar o curso ginasial, que meus pais consideravam o termo de minha vida acadêmica, os dois tinham mal terminado o primário. Minhas aulas eram à tarde, por isso saía bem cedo para o trabalho.
Se não estudar, disse-me o mestre de obras, não passa disso. E apontou para o bando de pedreiros que se afastavam para seus postos. Uma vida dura, a deles, ainda comentou.
Não acredito que tenha sido outra a razão para que tivesse insistido tanto para terminar o colegial. As palavras daquele homem que se vestia de maneira diferente dos trabalhadores, que falava de um modo que não era o deles, que chegava de automóvel e andava de roupa limpa, repercutem até hoje em meus ouvidos.
Mais tarde, em lugar da cesta coberta por uma toalha, continuei passando pelo cruzamento, mas agora com uma pasta de couro.
Todos os dias fazia o mesmo percurso: vinha pela rua São Tomé até a esquina, virava à esquerda pela rua da Aroeira e seguia até a avenida. Lá é que começavam as alterações de itinerário. A três quarteirões do cruzamento da rua da Aroeira com a avenida havia vários prédios em construção. Nos meus tempos de vendedor de pasteis, fazia todo o caminho a pé. Mais tarde, trabalhando para a Primavera Perfumaria Ltda., continuei vindo até a avenida, mas então para pegar um ônibus. E isso antes de comprar meu primeiro carro. Foi o tempo em que visitei todas as farmácias da cidade.
Casei, mas não tive filhos. Uma opção de vida que nos causou muito aborrecimento. As pessoas perguntavam, Mas e quando é que vem o herdeiro? Sobretudo os parentes perguntavam. E com insistência. E o neném, já encomendaram o neném? Meus pais recusavam a ideia de envelhecer sem um neto. E as pessoas, próximas e distantes, olhavam-nos com certo rancor porque não tínhamos filhos. O destino de todos os casais é sofrer esse castigo, e não se conformavam com o fato de nos termos esquivado do mesmo. Um dia o Dr. Everaldo, o dono da fábrica de perfumes, deixou recado no departamento de vendas para que eu aparecesse em sua sala. Além de químico, o Dr. Everaldo era um velho de bigodes, com autoridade, portanto, para me dar conselhos.
Logo que sentei, me jogou a pergunta sem introdução. É caso de alguma doença?, ele quis saber. Ante minha negativa, o Dr. Everaldo pegou um lápis com as duas mãos, cada uma segurando uma das pontas. Por algum tempo só olhou para o lápis, como se tentasse descobrir ali algum segredo. Subitamente me encarou, com seu ar paternal, e disse que agíamos muito mal, minha mulher e eu, porque, se todos pensassem como nós, o que seria feito da humanidade? Confessei-lhe minha ignorância no assunto, por isso me explicou que a humanidade poderia desaparecer. E que mal há nisso?, foi o que perguntei depois de refletir por alguns segundos. Que mal há nisso! Ele repetiu, a pele do rosto mudando de cor. Ora, a humanidade, ele tentou continuar, a humanidade, então deixaria de existir. Com todos os seus problemas, acrescentei. E desconfiei de que ele se preocupava, então, era com o mercado. Para quem venderia seus perfumes com o fim da humanidade? Tive vontade de rir, de comentar sua preocupação, mas me calei muito respeitoso.
Por fim, depois de algumas tentativas de filosofar a respeito do fim da humanidade, e já bem menos afetuoso, me mandou que fosse trabalhar.
 Meus cabelos branquearam quando enviuvei e logo depois me aposentei.
Nunca deixei de passar pelo cruzamento diariamente. Depois de aposentado, passo meus dias no parque, cerca de dois quilômetros daqui, e aproveito para fazer logo cedo minha caminhada. Escolho algum banco, nem sempre o mesmo, e sento. Dali acompanho o movimento dos carros, observo as pessoas que passam, ouço os passarinhos nas árvores, que já me conhecem e me saúdam diariamente. De vez em quando um jardineiro ou gari se aproxima, pede espaço no meu banco para sentar e ficamos conversando sobre tudo ou nada sem pressa ou ansiedade.
Nestes anos todos, o cruzamento manteve-se o mesmo que conheci quando criança. Alteração nenhuma. Por fim, já passava por ali sem perceber a paisagem. Os três prédios de esquina, com suas portas e janelas geralmente fechadas, o prédio de três andares na esquina por onde eu passava para dobrar à esquerda, com porta de aço para uma lojinha escura, quase sempre deserta antes do meio-dia, o asfalto com algumas falhas no meio da rua e as calçadas irregulares. O excesso de familiaridade apaga a paisagem. O cérebro deixa de se ocupar dela.
Isso até três semanas atrás.
Na segunda-feira, depois do meu café, fechei a porta de casa, guardei a chave no bolso e já ouvia com a imaginação o cumprimento dos passarinhos e sentia o aroma das flores quando cheguei ao cruzamento.
Na frente da lojinha, a calçada estava interrompida por um buraco de um metro e pouco de profundidade. Dentro dele, trabalhavam dois homens sem camisa, já suados àquela hora da manhã. Os dois cavavam a terra com suas pás e jogavam a terra sobre a estrada, que, de estreita, repartia sua carga com a rua.
Senti como se estivesse sendo invadido em minha casa. Então não se tem mais privacidade?, pensei com certa raiva. Parei na beirada do buraco e os interpelei.
− O que vocês estão fazendo aqui?
Eles não diminuíram o ritmo com que cavavam, não se olharam com vontade de rir, não tiveram reação nenhuma. Continuaram seu trabalho.
Mas aquele era meu cruzamento, desde mais de cinquenta anos era meu cruzamento e os dois com certeza não imaginavam isso.
Segurei o braço do mais próximo obrigando-o a me olhar e repeti a pergunta.
− O que vocês estão fazendo aqui?
Então os dois ficaram parados como se estivessem tentando entender minha pergunta. Neste momento, percebi que cruzaram olhares, mas olhares um tanto broncos, que não chegavam a resposta alguma.
− O Engenheiro mandou −, respondeu finalmente o que estava mais próximo de mim e cujo braço eu havia segurado. E continuaram cavando sem se preocupar com minha presença.
Na volta do parque, como este lado da cidade já estivesse entrando na parte escura do dia, o buraco estava lá, bem mais fundo do que naquela manhã, uma cratera protegida por uma fita amarela e preta para que ninguém, durante a noite,  resolvesse dormir lá dentro, que era lá embaixo, porque um sozinho, um ser sem acompanhante, era provável que não tivesse como escalar aquela altura.
Na manhã seguinte, a porta da lojinha continuava fechada, bem beirando o buraco, dentro do qual agora trabalhavam quatro homens sem camisa, esburacando para dentro da rua, porque o primeiro buraco, para quatro, já se mostrava muito estreito. Assim é que uns cinco metros quadrados do asfalto já tinham desaparecido e, enquanto dois deles cavavam e afrouxavam a terra, os outros dois a jogavam sobre a rua, onde já se viam duas montanhas.
Tive de fazer uma volta desviando para a outra calçada, a do lado de lá. Mas voltei até a beira do buraco, parei e gritei, perguntando aos trabalhadores o que estavam procurando no cruzamento, esburacando uma paisagem com mais de cinquenta anos. Eles suspenderam o trabalho por alguns segundos, refletindo, talvez tentando encontrar uma resposta para minha pergunta. Finalmente um depois do outro todos ergueram os ombros informando que não sabiam. Um deles me encarou e repetiu que era ordem do Engenheiro.
Agora não se passava um dia sem que a cratera tivesse aumentado seu diâmetro e sua profundidade. E assim foi até a sexta-feira.
Quando a chuva desabou, por volta das três horas da tarde, vesti rapidamente minha capa impermeável, me cobri com o capuz pontudo e vim de volta para casa. Ao passar pelo cruzamento, uns cinco operários estavam cavando valetas para evitar que a enxurrada jogasse água no buraco, ao mesmo tempo em que outros cinco instalavam uma imensa tenda sobre ele. Aquilo, de longe, parecia um circo. O trânsito já havia sido desviado para outras ruas, a lojinha nunca mais abrira sua porta de aço, e os poucos transeuntes que ainda usavam o cruzamento tinham de caminhar com um pé atrás do outro, rente à parede, porque as calçadas haviam sido transformadas em imensos fossos, de onde seria difícil escapar sem ajuda.
Na segunda-feira seguinte, a chuva tinha parado no sábado, há uma semana de agora, me dirigia para o parque sem ainda saber se a capa seria utilizada, um céu cinza nos cobria, quando cheguei ao cruzamento das ruas Aroeira e São Tomé. Seria mentir que me assustei, porque de tudo já vi na minha vida e não me assusto mais, mas fiquei surpreso. A tenda tinha sido desmontada e em volta do buraco uma chusma de trabalhadores se agitava.
Passei pela faixa de dez centímetros entre o buraco e a parede da lojinha, passei raspando o corpo no reboco áspero e já no lado de lá gritei para um grupo de homens que jogavam terra no buracão: − Mas o que é que vocês está fazendo?
O que aparentava ser o mais velho deles parou e me olhou rindo para responder: − Pois então não está vendo?
E continuou jogando terra para o imenso oco na rua.  
 Hoje é novamente segunda-feira. Estou no cruzamento, no meu e encontro o Engenheiro de prancheta na mão fazendo anotações. A cratera foi fechada durante esta semana, a rua recebeu nova camada de asfalto e a calçada está com lajotas novas.
Vendo que eu olhava para tudo aquilo com certo interesse, o Engenheiro se aproximou para comentar:
− O trabalho está perfeito, não está?


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