segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

DEGUSTAÇÃO 14 − ANTES DA MEIA-NOITE


ANTES DA MEIA-NOITE é um livro para jovens, mas interessa também aos adultos porque retrata o drama de muitas famílias na atualidade. Aline é uma adolescente que perde o ano na escola porque passa as madrugadas no computador.

Publicamos, a seguir, o primeiro capítulo dessa novela juvenil editada pela Ática, em 2007.

Para saber mais sobre a obra, acesse a página do livro aqui no BLOG DO MENALTON.


Menalton Braff . Antes da meia-noite

Capítulo 1

A Megera me chama

A Carol continua me olhando sem entender meu cochicho. Então, repito um pouco mais alto que o risco de sol em cima da minha carteira me deixa cega.

− Vem mais pra cá – ela diz, invadindo um pouco o corredor.

Inicio a manobra de fuga daquele risco incômodo de sol, mas a dona Carla vira-se para a classe e nos flagra:

− Então, dona Aline, algum problema?

Dona Carla foi uma das professoras que, no ano passado, votaram por minha reprovação. Sempre senti que ela não vai com a minha cara. E não é que eu desgoste dela, mas esses nomes da Biologia
me dão calafrios. Não consigo decorar os tais de repidóforos dos filocôndrios dela. Mas tenho feito força. Repetir outra vez seria uma tragédia.

Este feixe de sol batendo no caderno parece que me deleta os últimos neurônios, que já são poucos, porque ontem passei da meia-noite num chat. O sol bate de cheio no meu sono. Olho a lousa em que a dona Carla acaba de desenhar: uma obra de arte, não fossem aqueles nomezinhos indicados por flechas. Preciso responder. Ela usa giz de várias cores, e o desenho dela fica mais bonito do que o do livro. Preciso responder com urgência.

A classe toda sabe que sou repetente, por isso os colegas me olham como se eu estivesse montada num cabo de vassoura. Não posso ficar calada, dando razão a eles, que não param de me olhar.

− Este sol aqui – consigo finalmente gemer.

A professora se aproxima de mim, com toda certeza para descobrir nos meus olhos o tamanho do meu sono.

Este sol aqui, consigo finalmente gemer. A professora se aproxima de mim, com toda certeza para descobrir nos meus olhos o tamanho de meu sono.

– Encoste sua carteira na carteira da Carol.

Fico olhando a dona Carla sem acreditar que ela possa pensar como qualquer um de nós. Meu rosto está quente, mas arredo-me vitoriosa para o lado da Carol. Olho em volta e sinto que meu olhar de triunfo chicoteia alguns dos colegas, os mais decepcionados com o desfecho do episódio. 
Começo a entender a meiose e os cromossomos, mas me parece uma brutalidade sacrificar a mãe por duas filhas. Não vou comentar minha opinião com ninguém porque muitos daqui já olham torto para esta mania de reformar o mundo. Cito e logia, entenderam? E logia uma batida de leve à porta. Pequena cela que resultou em célula. As batidas agora são mais fortes e prolongadas, mesmo assim, dona Carla, empolgada, nada ouve.

Um dos meninos do gargarejo avisa:

– A porta, professora.

Dona Carla faz uma careta de desagrado pela interrupção, e muitos de nós rimos porque ela sabe essa coisa infantil de fazer caretas de desagrado, com o lábio inferior espichado, os olhos espremidos em suas órbitas e a cabeça sacudindo em movimentos rápidos. Só desmancha sua careta ao abrir a porta e deparar-se com uma inspetora de alunos. Não ouvimos o que as duas se dizem, mas ouço meu nome chamado pela professora.

– Dona Adélia está chamando você, informa a dona Carla.

Só posso ficar vermelha, pois tudo que eu faça é debaixo dos holofotes da turma.

Mas ainda olho para a Carol e cochicho:

– Reze por mim, que a Megera me chama.

Nossos passos apressados reboam nas paredes altas e nuas do corredor. Não resisto à curiosidade e ao medo e pergunto à inspetora se tem idéia do que aconteceu. Minha voz melosa, quase de choro, pode estar desafinada, mas acho que é sedutora. Trato a inspetora de senhora, tentando convertê-la a minha causa. Ela responde seca que não, que não sabe de nada. Ela deve saber, porque são elas que levam tudo até a Megera, mas se recusa a me dizer como vingança pelos maus-tratos recebidos do alunado em geral.

No fim do corredor, começamos a descer os degraus da escadaria e o mármore aumenta o volume de nosso toc-toc-toc. Tento pensar alguma coisa, arranjar uma desculpa razoável, então me lembro de que não sei a causa da convocação. Insisto com a inspetora, agora com voz de choro, uma honesta e sincera voz chorosa porque o medo me apavora. Dona Adélia é exagerada nos castigos.
Não me lembro de ter visto esta inspetora no ano passado. Acho que ela é nova por aqui. Incrível como já assimilou o jeito das outras: cara fechada, passo militar, seco, andando sempre em linha reta, com pressa, dando a impressão de alguma atividade urgente a sua espera. Se fosse uma das antigas, ela me falava alguma coisa. Sei que falava.

Entramos pelo corredor que vai até a porta da Megera – a porta da caverna – e me bate uma idéia assustadora bem dentro do crânio, cá onde sei o que sei: será que o Gabriel me cagüetou?
                                                                          
                                                                     *

Só me lembrei de que não tinha levado a chave quando desci do ônibus. Perguntei na portaria se minha mãe já tinha chegado e o porteiro respondeu que não. Então resolvi esperar por ela no saguão para subirmos juntas. Não gosto de ver a noite entrando pela janela sozinha no apartamento. É uma hora triste porque o dia não existe mais, e a noite ainda vai demorar algum tempo.

Na entrada do saguão, encontrei o Gabriel, que vinha do playground, onde tomara conta da Beatriz, sua irmã de cinco anos.

Ver o Gabriel sem o uniforme de todos os dias me deu a sensação de que é outra pessoa. A gente mora no mesmo prédio, apesar disso nos encontramos muito pouco. Além da escola, eu tenho o inglês e o balé. O Gabriel parece que faz judô e mais um curso que eu nunca entendi direito.
A Beatriz foi embarcada no elevador e o Gabriel voltou pra me fazer companhia. Foi o que ele disse:

– Você acha ruim se eu te fizer companhia?

Ele é assim: todo cheio de dedos. Mas eu sei por quê. Depois do baile de formatura, toda vez que pode ele me aborda. Já disse que não, que ficar é uma coisa, namorar é bem diferente. Ele é bonito, o Gabriel, mas um pouco apagado. Não é como os outros meninos da nossa idade. Ele me parece muito certinho.

– Pelo contrário. Acho até é muito bom.

Sentamos no sofá da sala de estar e ele me pediu pra ver o material do inglês.

– Você gosta?

Não entendi a pergunta.

– Se eu gosto?

– Do inglês.

Então me queixei a ele que detesto as aulas de inglês, pois acho muito difícil, mas na cabeça da minha mãe não cabe sua única filha sem falar pelo menos uma língua estrangeira. Por achar difícil mesmo, ela diz, por achar difícil é que precisa estudar fora. Além disso, ela me prometeu uma viagem para a Disney se eu passar de ano.

– Ela te comprou?

Não gostei muito do sorriso cheio de malícia do Gabriel, mas preferi não responder. Bem que entendi a insinuação dele, mesmo assim fiquei quieta.
Até o ano passado estudamos sempre na mesma classe, então levei bomba e fiquei para trás. Éramos bons amigos, mas crescemos e nos afastamos. Ele não me olha mais com a ingenuidade de antigamente.

Tentando desconversar, comecei a falar dos passos do balé, de peças que conheço. Ele se mostrou interessado, perguntou se nas férias podia assistir a algumas aulas.

Depois, como era inevitável, nos ocupamos da escola, nosso ponto de união. O mais gostoso era falar dos professores. Os que consideramos legais e por quê. Em quase tudo a gente concordava, mas, quando chegou a vez de dona Carla, ele não concordou em nada comigo. Disse que ela era muito competente, que não precisava de livro pra dar aula e que tinha domínio de classe.
– Na aula da dona Carla, ninguém faz bagunça.
Comecei a concordar com ele. Na verdade o que detesto, eu disse, são aqueles nomes que a gente tem de decorar.

Por fim, a diretora, dona Adélia. Nova divergência. Ele disse que era severa, mas muito educada. E competente. Que os jornais, de vez em quando, publicavam artigos da diretora sobre educação. Autoridade no assunto, entende?

E eu, que não gosto da dona Adélia, fiz cara de zombaria.

– Putz, meu, a Megera autoridade em educação? Qual é, Gabriel! Aquele monstro ficava muito melhor num campo de concentração!

Ele sorriu sacudindo a cabeça, que não, ele sabia muito bem o que estava dizendo. Por algum tempo ficamos em silêncio, então percebi que ele respirou fundo e mudou de cor.

– Sabe, ele começou, às vezes eu sinto muita saudade daquele baile. E acho que você ainda não percebeu, mas sou muito a fim de você.


Sei que fiquei muito vermelha. Sempre fico. Gosto do Gabriel como amigo, mas acho ele meio careta. 

Então disse pra ele que amizade sim, tudo bem, mas era só isso. Acho que ele ia dizer mais alguma coisa quando minha mãe apareceu na porta.

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